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A expressão Mutilação Genital Feminina (MGF) foi substituída por Corte dos Genitais Femininos (CGF) pelo Fundo das Nações Unidas de Apoio à População (UNFPA), devido à carga semântica da palavra «mutilação», que ao mesmo tempo que condenava a prática, acabava também por estigmatizar certas sociedades.

A discussão pública desta prática em certos contextos teve efeitos perversos, visto que se trata de um assunto considerado da esfera «privada», abordando publicamente o sexo menos valorizado e menos conhecido, que é a vagina. Muitas mulheres sentiram necessidade de se defenderem, recorrendo exactamente ao quadro ideológico que sustenta a prática do corte dos genitais femininos, recusando o estigma de  mulheres ”mutiladas”, ou incapazes de sentir prazer. Ao mesmo tempo, biografias de mulheres (africanas na diáspora) que se auto-intitulavam de «mutiladas» denunciavam a traumatizante e humilhante prática do Corte dos Genitais Femininos.

Subscrevo esta mudança semântica, pois entendo que ela não minimiza a consciência de que o Corte dos Genitais Femininos é um atentado aos Direitos da Mulher e da Criança. Esta mudança semântica também não esconde aquilo que verdadeiramente sustenta esta prática: o controlo da mulher pelo homem. O poder manifestado, pura e duramente, em prol de várias causas e de vários argumentos que se podem sintetizar na busca de prazer pelo homem e na afirmação da sua masculinidade.

Os diferentes tipos de corte dos genitais femininos (que vão desde o corte parcial ou total do clitóris à infibulação – eliminação total do clítoris e dos pequenos lábios, e costura dos grandes lábios) são elucidativos do grau de complexidade desta temática, mas, sobretudo, da sua dispersão enquanto prática racional e justificada, pois as variações ao nível do corte, são-nos também ao nível do entendimento das sociedades sobre o mesmo.

Assim sendo, mais importante do que condenar a prática, coisa que muitas organizações têm estado felizmente a fazer, urge desmistificar os argumentos para a prática do Corte dos Genitais Femininos e esvaziá-lo de preconceitos.

Se pensarmos nas consequências nefastas que o Corte tem para a mulher, a vários níveis, podemos compreender o quanto a prática está ao serviço do homem e da sua masculinidade. Teoricamente, a prática do CGF assenta na trilogia, asseio, higiene e moral, escamoteando aquilo que é na realidade a sua única e verdadeira razão: o controlo da mulher, da sua sexualidade e da sua vida, eliminando-lhe uma das mais garantidas fontes de prazer sexual.

O corte dos genitais femininos é uma prática que exprime, assim, as relações de poder instituídas nas sociedades onde é praticada.

Sobre os fundamentos religiosos da prática do Corte dos Genitais Femininos –muito associada ao Islão - Não se tendo Maomé referido especificamente sobre o CGF no Alcorão, nos textos que surgiram de base jurídica, aparece que nas conversas de Maomé, ao perguntarem-lhe se era uma prática que se deveria ou não fazer, o profeta não o confirmou como sendo necessária, mas também não o proibiu, dando liberdade para a sua escolha.

Esta não obrigatoriedade do corte dos genitais femininos divide a comunidade islâmica, pois alguns não o praticam e outros encaram-no como um preceito religioso. A interpretação das escrituras não é uniforme relativamente a esta prática. Assim sendo, apesar da base ideológica do CGF ser fraca, o seu aparelho ideológico, que é o islão, é bastante eficaz.

Sendo o Islão uma religião marcada pela invisibilidade feminina face ao poder instituído do homem, o aparelho ideológico do corte dos genitais femininos encontra-se também ele ao serviço do homem.

A circuncisão é chamada de toara pelos árabes, palavra esta que significa purificação. Na mesma ordem de ideias, a mulher não excisada (ou infibulada em certas sociedades) é vista como suja, promíscua, impura e diabólica, ao passo que a mulher que foi sujeita ao corte dos genitais, diz-se que foi limpa, purificada.

O Corte dos Genitais Femininos é também um ritual de iniciação que encontra o seu significado profundo neste universo de símbolos e valores. É visto como um sacrifício que a mulher oferece a si própria, aos outros e à sua comunidade e religião, tanto que depois os iniciados são recebidos triunfalmente pela comunidade.

Contudo, o secretismo que laureia a prática do corte genital é, também, responsável pela perpetuação de ideias e mitos sobre o mesmo. O não questionamento da prática permitiu até recentemente a sua prática secular, pois sendo segredo, como poderia ser publicamente questionado?

É preciso continuar o debate público no sentido de esvaziar de importância as limitadas explicações para a continuação da prática do Corte dos Genitais Femininos. Porque a sua explicação peca por uma base justificativa insipiente. A luta contra o medo e a exclusão da comunidade, que continuam a ser as locomotivas para a sua perpetuação, são os maiores desafios.

Joacine Katar Moreira, natural da Guiné-Bissau e doutoranda em Estudos Africanos no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa.

 

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