Erradicar a mutilação genital feminina (I) Versão para impressão
Domingo, 06 Fevereiro 2011
Mutilação Genital Feminina

A 6 de Fevereiro comemora-se o Dia Internacional pela Erradicação da Mutilação Genital Feminina, flagelo que afecta muitas mulheres em África, na Ásia, na Europa.


Artigo de Ana Margarida Ferreira


Pergunto-me, todavia, quantos de nós saberão exactamente o que é esta prática tradicional nefasta, o que ela implica na vida de uma mulher, porque urge combatê-la, que interesses estão por trás da sua manutenção em pleno século XXI.

A Amnistia Internacional declara que 3 milhões de mulheres e raparigas são anualmente sujeitas a esta prática, o que significa que, por dia, em média 8000 raparigas em todo o mundo sobrevivem a esta verdadeira tortura. Só na Europa, 500000 mulheres sofrem as consequências a longo termo desta cruel prática ancestral (estimativa do Parlamento Europeu).

Esta prática cultural nefasta é maioritariamente praticada em África (28 países), mas também em alguns países asiáticos e do Médio Oriente (como o Iraque), bem como em

vários países europeus e nos EUA devido aos fluxos imigratórios. Portugal é um desses países.

Mas afinal o que é a mutilação genital feminina? Trata-se de uma excisão à genitália femininai, correspondendo a um de quatro tipos. O primeiro consiste no corte do prepúcio do clítoris e/ou no corte parcial ou integral do clítoris (clitoridectomia), o segundo na extracção integral do clítoris e/ou retirar total ou parcial da lábia minora (excisão), o terceiro (também conhecido como infibulação) no corte do clítoris e lábia minora cozendo a lábia majore tapando a uretra e a vagina, deixando somente um buraco para escoar a urina e o fluxo menstrual. Finalmente, o quarto tipo consiste em todas as mutilações não classificadas, nomeadamente qualquer incisão, piercing, alongamento do clítoris, etc.

E porque se procede à mutilação genital feminina? As motivações divergem de região para região, de etnia para etnia. Na realidade, esta prática está normalmente associada a grupos islâmicos africanos, os quais crêem que se trata de um “mandamento” do Al Corão. Contudo, nada poderia estar mais afastado da realidade. Não só não existe qualquer referência a esta prática no livro sagrado muçulmano, como muitos outros povos islâmicos não praticam esta mutilação, existindo vários líderes religiosos que inclusivamente a condenam. A ignorância e falta de informação permitem que esta ideia se instale nas mentes dos homens e mulheres destas tribos.

Importa referir que, tratando-se ou não de comunidades islâmicas, todas as comunidades praticantes acreditam que os espíritos se revoltaram contra si perante a não prática desta mutilação. Falamos de comunidades extremamente supersticiosas, com baixa escolaridade, maioritariamente rurais, e fechadas sobre si mesmas. Esta desinformação permite, inclusivamente, a crença em teorias desfasadas da realidade, como as que os fazem crer no cariz higiénico desta prática (os órgãos genitais femininos são vistos como impuros e sujos) e na eficácia no combate a doenças e diminuição de nados mortos (quando na realidade o resultado é o oposto).

Independentemente da justificação apresentada (e efectivamente sentida), em toda e qualquer situação o que está em causa é uma ideia de submissão feminina. O corte do clítoris reduz o prazer feminino quase a zero, o estreitamento do orifício permite o aumento do prazer masculino, a mutilação é um símbolo de domínio masculino, crendo-se que a mulher terá menos propensão para a infidelidade e se tornará mais dócil e apta à satisfação do homem a qualquer nível. São sociedades machistas em que a mulher não tem voz.

Em muitas destas comunidades esta prática integra-se num ritual de passagem à idade adulta. É praticada em meninas entre os quatro e os quinze anos, e ao corte segue-se uma festa em que a criança ou jovem é presenteada com comida e prendas, seguindo-se um processo de aprendizagem dos mesteres caseiros, os quais a integram na sua sociedade. Todavia, antes de se chegar a esse momento de adoração do coração da criança, esta passa por muitas horas de agonia. A clitoridectomia/excisão/infibulação pode ser efectuada no recato da casa junto às mulheres da família bem como num local sagrado, normalmente uma pedra, um arbusto, onde a criança é depois deixada sozinha a cicatrizar a ferida. Os instrumentos utilizados para realizar o corte vão desde lâminas e tesouras até às próprias unhas da fanateca (mulher responsável pela efectuação do corte). A probabilidade de infecção é imensa, muitas crianças morrem durante este processo, e as que sobrevivem passam por momentos de dor intensa, por vezes febris, em risco de septicemia entre outras possíveis consequências como, por exemplo, tétano. O flagelo da mulher não cessa com a chegada da festa. As possíveis consequências a longo prazo vão desde dores profundas no parto, complicações durante a gravidez, dificuldades no parto para si e para a criança (aumentando o risco de nados mortos), dores insuportáveis durante o acto sexual, ausência de prazer sexual, aumento do risco de contaminação com HIV SIDA. A infibulação, forma mais severa de MGF, obriga, inclusivamente, a que a mulher volte a ser cortada e depois cozida para viabilizar o coito e o parto, sendo a mulher obrigada a reviver parte das dores do momento do corte (conduzindo ao recordar do dia da mutilação, tantas vezes recalcado como defesa). Além de todas estas possíveis consequências, os traumas psicológicos são inevitáveis, experienciando problemas emocionais de tal forma graves que podem conduzir a problemas relacionais com os próprios filhos.

Em locais onde a mulher não tem uma palavra a dizer sobre o seu próprio corpo, onde a vivência da sexualidade feminina de modo saudável não é permitida, onde a mulher existe para satisfazer primeiro o pai, depois o marido, mas sempre em função de outro e não de si mesma, a mutilação de um órgão é vista com normalidade. Não há escolha. Uma mulher não mutilada é discriminada pelos seus pares, não é apetecível para contrair matrimónio, e é do casamento que depende o sustento da mulher. A mutilação genital feminina é também um problema de índole social, muito além do seu cariz cultural ou religioso.

 

“Let not men then in the pride of power, use the same arguments that tyrannic kings and venal ministers have used, and fallaciously assert that women ought to be subjected because she has always been so.... It is time to effect a revolution in female manners – time to restore to them their lost dignity.... It is time to separate unchangeable morals from local manners.”ii

 

Nota: ver Erradicar a mutilação genital feminina (II)

 

i A mutilação genital feminina é definida pela OMS, UNICEF e UNFPA como “a remoção total ou parcial da parte externa dos órgãos genitais femininos ou outras ofensas sobre os órgãos genitais femininos por razões culturais ou outras não terapêuticas”.

 

ii Mary Wollstonecraft.

 

 

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