F de Fátima: A Batalha Ideológica em Directo Versão para impressão
Sábado, 04 Abril 2009

Quando a televisão não mostra nem fala, está a esconder e a calar. Pelo que, do mesmo modo, quando repete as opiniões derivadas da ideologia dominante, está a confirmar e a reforçar essa ideologia.

Texto de Bruno Góis

Fado, Futebol e Fátima são os três eFes de uma ‘cultura' associada ao F do Fascismo Português. (Sobre aqueles que negam o carácter fascista do Estado Novo: aconselho a leitura de Loff1 2008). Não podemos, contudo, dizer que Fado, Futebol e Fátima são causa ou consequência linear do F que os agrupa. Um olhar marxista não se contenta com tais simplismos. O marxismo, como teoria crítica avant la lettre, é mais exigente: analisa a realidade de uma perspectiva dialéctica e, ao contrário da teoria clássica, assume um papel activo e transformador da realidade em análise2.

A genealogia clássica busca elementos "protofascistas" para constituir o núcleo a partir do qual se formou o fascismo. ‘[A]o passo que a genealogia nietzschiana leva completamente em conta a ruptura constitutiva de um novo evento histórico: nenhum dos pretensos elementos "protofascistas" é fascista per se; aquilo que os torna fascistas é a sua articulação específica [...] esses elementos são "cooptados" pelo fascismo'. É nesse sentido que, partilhando a visão de Žižek, podemos dizer: ‘não há fascismo avant la lettre, pela simples razão de que é a própria letra (a nominação) que articula em conjunto o facho [fascio] dos elementos próprios do fascismo [...] O próprio predicado protofascistas devia ser abandonado' (2003)3.

O eFe de Fátima dos nossos dias passa em directo na televisão: falo concretamente do programa Fátima, que passa na SIC e é produzido pela Comunicason. Este programa é apenas um entre os muitos e diversificados elementos que participam do ‘aparelho ideológico do Estado' [conceito de Althusser]. Mas tem a particularidade de se prestar na perfeição a esta análise.

Numa das edições da rubrica ‘Aqui Fala-se' [rubrica dedicada aos temas sociais e políticas inaugurada em Janeiro de 2009] Fátima Lopes [a apresentadora que dá nome ao programa] teve um momento de verdade: em que pôs a nu o seu papel. Na edição em causa, Joana Amaral Dias, no seu papel de comentadora [e consequentemente opinion-maker] desta rubrica, apelou à participação política das cidadãs e cidadãos: apelou ao voto como forma de mudar positivamente a sociedade. Nisto, Fátima Lopes intervém dizendo que ‘as pessoas votam, mas fica tudo na mesma' e o momento de verdade seguiu-se imediatamente: quando confessou que estava apenas ‘a dizer o que as pessoas dizem', ou seja, a ser a voz do senso comum: a ser a voz da ideologia dominante.

Quando a televisão não mostra nem fala, está a esconder e a calar. Pelo que, do mesmo modo, quando repete as opiniões derivadas da ideologia dominante, está a confirmar e a reforçar essa ideologia. Recapitulando: o programa Fátima, como muitos outros, desempenha um papel importante na batalha ideológica.

A confissão do crime de conscientemente ‘ser a voz do senso comum' [ser, no limite, a voz do populismo; essa confissão] é um acontecimento em si mesmo. Mas não deixa de ser importante o seguimento dado por Joana Amaral Dias. Ela aproveitou para pôr uma estaca e abrir uma brecha na ideologia dominante; contrariando o senso comum, disse: que as pessoas votam sempre nos dois mesmos e que é por isso que não há mudança de facto. Quando disse que há alternativas para além do PS e do PSD, os espectadores e as espectadoras encontraram nas suas palavras mais um sinal de que o Bloco de Esquerda se afirma como alternativa de poder.

Quando na rubrica ‘Aqui fala-se' se debate o casamento homossexual, a interrupção voluntária da gravidez, a crise económica etc., o papel de Joana Amaral Dias tem-se revelado crucial: levando dados concretos e opiniões estruturadas que ajudam a ultrapassar as investidas direitistas-populistas do fadista João Braga [um dos demais comentadores].

Uma parte significativa das cidadãs e cidadãos é muito influenciada pelos fazedores de opinião. A essas pessoas apenas conseguimos chegar pelos programas fazedores de opinião. Por essa razão, todos os espaços de fazedores de opinião devem ser disputados: sendo o Fátima apenas um exemplo.

Bruno Góis

1 Loff, Manuel, (2008) O Nosso Século é Fascista! - O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945),; Editorial Campo das Letras, Porto, 2008

2 A Teoria Crítica, proclamada por Horkheimer em 1937, pode ligar-se ao princípio geral que já estava patente na 11ªTese sobre Feuerbach: ‘Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.' (Karl Marx, primavera de 1845). Por isso falo em teoria crítica avant la lettre. Vejamos que é o próprio Horkheimer a afirmar a origem da Teoria Crítica em Marx: ‘Em meu ensaio "Teoria Tradicional e Teoria Crítica" apontei a diferença entre dois métodos gnoseológicos. Um foi fundamentado no Discours de la Méthode [Discurso sobre o Método], cujo jubileu de publicação se comemorou neste ano, e o outro, na Crítica da Economia Política. A teoria em sentido tradicional, cartesiano, como a que se encontra em vigor em todas as ciências especializadas, organiza a experiência à base da formulação de questões que surgem em conexão com a reprodução da vida dentro da sociedade actual. Os sistemas das disciplinas contém os conhecimentos de tal forma que, sob circunstâncias dadas, são aplicáveis ao maior número possível de ocasiões. A génese social dos problemas, as situações reais nas quais a ciência é empregada e os fins perseguidos em sua aplicação, são por ela mesma consideradas exteriores. - A teoria crítica da sociedade, ao contrário, tem como objecto os homens como produtores de todas as suas formas históricas de vida. As situações efectivas, nas quais a ciência se baseia, não são para ela uma coisa dada, cujo único problema estaria na mera constatação e previsão segundo as leis da probabilidade. O que é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do homem sobre ele. Os objectos e a espécie de percepção, a formulação de questões e o sentido da resposta dão provas da actividade humana e do grau de seu poder." (Max Horkheimer, Filosofia e Teoria Crítica, 1968, em Textos Escolhidos, Coleção Os Pensadores, p. 163)

3 Žižek, Slavoj, (2003) "Learning to love Leni Riefenstahl" in In These Times, www.inthesetimes.com, 10 de Setembro de 2003

 

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