Cultura de Consumo Versão para impressão
Terça, 05 Fevereiro 2013

cultura-consumo-nuevas-tecnologias image003Enquanto conceito, a propriedade intelectual surgiu legalmente no século XIX, muito embora os seus preceitos jurídicos fizessem já sentir a sua evolução ao longo dos séculos anteriores.

Artigo de Lídia Pereira

 "O século XX foi o século da propriedade da terra. O século XXI será o século da propriedade intelectual, das ideias." Brett Gaylor in "RiP! A Remix Manifesto"

Enquanto conceito, a propriedade intelectual surgiu legalmente no século XIX, muito embora os seus preceitos jurídicos fizessem já sentir a sua evolução ao longo dos séculos anteriores. Os objetivos que presidiram ao seu aparecimento legal prendem-se com argumentos de preservação da criatividade e incentivo ao progresso, através da atribuição de direitos exclusivos aos/às detentores/as da responsabilidade pela criação de bens de natureza imaterial. No Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, encontra-se prevista e garantida a proteção dos interesses morais e materiais do/a autor/a em relação às suas "produções científicas, literárias e artísticas". Desta forma, este conceito poderá também ser discutido de um ponto de vista moral.

Cultura de Permissão

Como atua hoje o sistema de leis cuja finalidade é proteger a propriedade intelectual (direitos de autor, marcas registadas, patentes, etc)?

A primeira lei referente aos direitos de autor, denominada Estatuto de Anne, surgiu em 1710. O seu principal objetivo era proteger, preservar e incentivar a criatividade, recorrendo para isso a um equilíbrio entre os direitos do autor e os direitos do público. Este estatuto permitia que, após 14 anos (renováveis por mais 14 se o/a autor/a ainda se encontrasse vivo por ocasião da data da expiração) a obra caísse no domínio público e, ao contrário do que hoje acontece, não colocava quaisquer restrições à sua utilização por parte de outros/as criadores/as no desenvolvimento de obras derivadas.

Sob pressão das grandes indústrias culturais, os prazos referentes ao limite de aplicação dos direitos de autor foram sendo continuamente alargados, até se fixarem, atualmente, nos 70 anos após a morte do/a autor/a. Algumas corporações pertencentes ao ramo podem conseguir até 95 anos. Esta extensão do prazo serve, por isso, mais os interesses financeiros de privados que a proteção propriamente dita dos direitos que o/a autor/a tem sobre a sua obra.

Analisemos o exemplo da indústria discográfica. Com o aparecimento da Internet e consequentes facilidades na partilha de ficheiros, esta indústria viu escoar grande parte dos seus lucros, pelo que a solução que encontrou foi a de levar à exaustão o seu modelo de negócio até então, protegendo-se contra estas perdas através da pressão governamental para a aplicação de leis cada vez mais rígidas e ambíguas. A questão é menos a discussão da legitimidade de possíveis atos de pirataria do que a adequação e ajustamento destas leis às necessidades da sociedade atual, e ainda que interesses servirão verdadeiramente. Muitas vezes, as multas aplicadas por violação de direitos de autor (sob qualquer forma que esta apareça, sob princípios mais ou menos discutíveis) atingem valores completamente absurdos, de cujo montante pouco ou nada chega a ir para o/a artista cujos direitos seriam assim protegidos (isto não implica, no entanto, que em certos casos o contrário também não aconteça).

Um exemplo recente de como os direitos de autor protegem hoje menos o/a autor/a do que as empresas a ele/a associadas, é nacional - os escritores João Tordo, Miguel Real, Valter Hugo Mãe e Patrícia Reis acusam a não receção de direitos de autor a partir de 2009/10 por parte da sua editora, QuidNovi. A acrescentar, apenas o facto de ter sido aplicada uma promoção no mais recente livro de Tordo, a qual este não subscreveu.

Segundo Bruce Lehman, Secretário-Assistente do Comércio e Diretor do Departamento das Patentes e Marcas Registadas dos E.U.A. de 1993 a 1998, "numa economia moderna, a riqueza reside no produto da mente, nas criações intelectuais";. Assim, os Estados Unidos procuraram empreender uma estratégia comercial a nível mundial fundada sobre estas premissas. O resultado foi a promoção da aceitação de um tratado que definia a imposição das regras de direitos de autor americanas por parte dos países que com este quisessem estabelecer relações comerciais. Hoje em dia, Lehman, um dos seus maiores defensores, acusa este tratado (TRIPs Agreement) de ser um fracasso, não porque se comporta de forma a promover e acentuar as desigualdades nos países em desenvolvimento, forçados a aceitá-lo como parte da criação da Organização Mundial do Comércio (pese embora a sua desadequação face às reais necessidades dos mesmos), mas porque estes não cumpriram com a sua parte do acordo, representando assim, segundo ele, pesadas perdas para a economia americana.

Lawrence Lessig, advogado e ativista dos direitos de autor, argumenta que os conceitos relacionados com a propriedade intelectual foram assim apropriados pela atual economia de mercado, onde interessa mais a proteção de acesso e acumulação de capital por parte das corporações detentoras de larga percentagem da cultura que consumimos, do que propriamente a promoção da criatividade através da defesa dos interesses do/a autor/a e o equilíbrio dos mesmos com os interesses da esfera pública. Esta é uma "cultura de permissão", isto é, uma cultura onde, para criar a partir do passado, é necessário pedir permissão aos seus detentores. Uma das mais graves consequências desta extensão de poder das leis de direitos de autor, exigindo compensações financeiras elevadíssimas por qualquer violação das mesmas ou até o pagamento de somas avultadas na obtenção da permissão atrás referida, é precisamente o aparecimento de uma cultura de consumo, contra a qual o estabelecimento de relações e interações por parte do público se encontra assim gravemente dificultada. Hoje, uma música pode pertencer até 4 empresas diferentes, todas elas exigindo o pagamento de direitos caso seja pretendida a sua utilização na produção de trabalhos derivados. É sabido que toda a cultura existe graças a movimentos culturais passados - até esta continuidade é atualmente posta em causa graças a tais procedimentos jurídicos. Mais uma vez, importa aqui refletir se serão ainda os/as autores/as os/as principais contemplados/as nesta suposta proteção dos seus direitos, ou se o legítimo argumento da promoção da criatividade é falsa justificação do qual os interesses económicos das grandes indústrias culturais se aproveitam, neste processo colocando um travão à nossa liberdade de interação com a cultura.

Cultura Livre

A alternativa a esta sociedade de permissão é por Lessig descrita enquanto sociedade legalmente preparada para a livre troca de influências culturais e o uso das mesmas na produção de novos trabalhos - esta é uma cultura de "remistura". Caracteriza-se por ser participatória e democraticamente mais saudável. Importa, no entanto, sublinhar que este formato cultural não acarreta a extinção do conceito de propriedade intelectual. Pelo contrário, uma cultura livre deverá construir-se sobre a premissa da proteção dos direitos que garante aos/às criadores/as. A diferença reside na liberdade concedida à esfera pública no âmbito das interações que esta pode e deve estabelecer com o seu passado cultural, limitando a extensão do poder destes mesmos direitos. Interessa assim debater alternativas que, procurando estabelecer a defesa da propriedade intelectual contra a sua instrumentalização por parte de privados, garanta um equilíbrio propício ao desenvolvimento da criatividade. Porém, cultura livre não significa cultura grátis, mas sim, segundo os seus apologistas, liberdade de expressão.

Copyleft - All Rights Reversed

As primeiras experiências no campo do que mais tarde seriam chamadas as licenças Copyleft surgiram associadas ao desenvolvimento de software. Fazendo uso de um trocadilho com o original Copyright, pretende demonstrar que, embora não o abandone, com este se articula de forma a conceder aos/às utilizadores/as de trabalhos assim licenciados o direito de distribuir cópias e versões modificadas dos mesmos - o principal requerimento é que os mesmos direitos sejam preservados na distribuição dessas versões. Um exemplo bem conhecido de uma licença Copyleft é aquela que surgiu para licenciar o projeto GNU de Richard Stallman. A licença GNU GPL surge assim como solução para que a apropriação e exploração financeira do trabalho por parte de entidades privadas seja legalmente impedida. Outras licenças Copyleft funcionam de forma semelhante e poder-se-ão aplicar também a trabalhos de cariz artístico, documentos, etc.

Creative Commons - Some Rights Reserved

No ano de 2001 surgiu a organização Creative Commons, fundada por Lawrence Lessig, Hal Abelson e Eric Eldred, com o apoio do Centro para o Domínio Público. Tal como as licenças Copyleft, as licenças Creative Commons não são uma alternativa aos direitos de autor, antes se articulam com estes de forma a conceder mais liberdades, tanto aos/às criadores/as, como ao público em geral. Assim, os/as primeiros/as poderão escolher a licença que melhor se adequa às suas necessidades. A única característica que todas partilham é a da atribuição, isto é, toda e qualquer utilização de um trabalho sob licença Creative Commons requer a identificação do/a seu/sua autor/a. Segundo os fundadores, a sua aproximação aos direitos de autor procura compatibilizar-se com o potencial criativo e democratizante da Internet.

Desde 2005 que esta organização tem procurado atuar também no campo da ciência, argumentando que o processo e investigação científica se encontra gravemente dificultado graças à instrumentalização financeira das patentes, a qual impede muitas vezes a utilização de certas ideias no desenvolvimento de outras. Na indústria farmacêutica, para além das graves consequências que esta situação tem ao nível do aperfeiçoamento dos tratamentos, convém ainda acrescentar as desigualdades que acentua no acesso aos mesmos, principalmente nos países em desenvolvimento que mais necessidade têm, graças à estipulação de preços proibitivos.

Também na área da educação, desde 2007, estão a ser feitos esforços para a criação de uma base de partilha de material educativo.

Por uma sociedade mais plena, mais participativa e participada, é necessário fomentar o debate de alternativas plausíveis e democráticas para a construção de uma cultura livre, resgatando-a assim de interesses económicos que a transformem num bem de consumo.

 

Pesquisa Adicional:

Gaylor, Brett - "RiP! A Remix Manifesto", 2008

"What is Copyleft" [em linha] Disponível em WWW: <http://www.gnu.org/copyleft/>

"Creative Commons" [em linha] Disponível em WWW: <http://creativecommons.org/>

"Tripping Over the TRIPs Agreement" [em linha] Disponível em WWW: <http://www.salon.com/2006/04/06/trips/>

 

 

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