O bosão de Higgs Versão para impressão
Segunda, 23 Julho 2012

É o acontecimento científico do ano, e uma das descobertas mais importantes na Física nas últimas décadas. Mas o que é mesmo esse tal de bosão de Higgs, e porque é tão importante? Como foi possível observá-lo, e o que é que Portugal teve a ver com isso? E já agora, quais os próximos “temas quentes” na Física de Partículas? Estas são as questões às quais o artigo procurará responder, sendo dirigido a um público de “não-Físicos” interessados.

Para perceber o que é o bosão de Higgs é preciso entender o chamado Modelo Padrão das partículas elementares. Desde as estrelas e galáxias até ao nosso planeta e ao corpo humano, tudo o que observamos é constituído por moléculas, feitas de atómos, que por sua vez são constituídos por núcleos de protões (de carga positiva) e neutrões, em torno dos quais giram electrões. Os electrões (símbolo “e”) são (até prova em contrário...) partículas elementares, mas sabemos desde os anos 60 que os protões e neutrões são por sua vez constituídos por quarks up (símbolo “u”) e down(“d”). Do estudo de algumas reacções nucleares sabemos que os electrões têm um parceiro neutro e muito leve, chamado neutrino (“ν”). Estas quatro partículas – u, d, e, ν – bastam para conseguir “construir” todo o Universo que podemos observar! O mundo das partículas elementares é no entanto um pouco mais complicado. Sabemos hoje que, em colisões de energias elevadas, são produzidas muitas novas partículas, mais pesadas, instáveis e que se desintegram eventualmente. Mas todas elas, ou são os “primos” pesados dos electrões – os muões ou taus – ou são os seus neutrinos correspondentes, ou então são compostas por primos pesados dos quarks u e d. Os electrões e seus primos, mais os neutrinos correspondentes, chamam-se leptões. Podemos pois arrumar as partículas em três “famílias” ou “gerações”, semelhantes à base constituída por u, d, e, ν, como se vê na figura.

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Na figura estão ainda representadas a azul quatro partículas chamadas “mediadoras das forças”. De entre essas reconhecemos o fotão (“γ”) que, para além de constituir a luz visível, é a partícula “mediadora” da interacção electromagnética. O gluão (“g”) diz-se a partículas mediadora da interacção forte, que é responsável por manter os quarks bem “colados” uns ao outros em protões, neutrões e núcleos, contrariando a repulsão eléctrica. Os bosões Z e W são os mediadores da interacção fraca, responsável pela transformação de partículas umas nas outras. por exemplo, nos declínios radioactivos ou na fusão nuclear.

Mas o que é isso de partícula “mediadora”? No caso da interacção electromagnética, isto significa que, de cada vez que uma carga positiva atrai uma negativa (por exemplo num átomo), ou que um campo magnético faz curvar um fio condutor onde passa corrente, há muitas trocas de fotões entre as cargas envolvidas nesses processos.

Estas partículas mediadoras não aparecem no modelo por acaso, resultam de um mecanismo teórico muito elegante, que liga estas interacções a simetrias da natureza. Uma das bases teóricas mais importantes da Física do século XX é o teorema de Noether, que diz que a cada lei de conservação corresponde uma invariância das equações que regem o sistema. Ou seja, se, quando fizermos uma certa transformação das variáveis, a forma das equações se mantiver a mesma, isto significa que há uma certa quantidade que se conserva. Uma transformação de variáveis é,por exemplo, uma rotação em torno de um eixo. Uma quantidade que se conserva é, por exemplo, a carga eléctrica – isto é, num qualquer processo de interacção entre partículas, a carga total do estado inicial é igual à carga total do estado final.

E de facto, no modelo padrão das partículas elementares, o “axioma” da teoria é a invariância das equações para certas transformações de simetria. A conservação da carga eléctrica, e o surgimento do fotão como partícula mediadora, aparecem como consequência da imposição da chamada simetria U(1). Da mesma forma, a quantidade conservada na interacção forte, a “cor” e as suas partículas mediadoras, os gluões, são consequências de outra simetria, a SU(3). Para completar o quadro, a simetria SU(2) impõe a conservação de mais uma propriedade análoga à carga, a “hipercarga”, e o aparececimento dos bosões Z e W.

É portanto um modelo muito elegante, que parte de um princípio-base simples, de simetria, para explicar a existência de todas as partículas que conhecemos e todas a suas interacções (excepto uma, a gravítica, mas isso é outro problema...).

Só que tem um pé de Aquiles. Que se chama massa.

A parte da teoria que descreve a massa das partículas elementares (os “termos de massa” das equações) não respeitam a tal, fundamental, invariância para as simetrias do modelo, as que geram as interacções. Ora nós sabemos que, de todas as partículas elementares, apenas o fotão e o gluão não têem massa. Os quarks, os leptões, e os bosões Z e W, todos têem massa, por isso isto seria uma contradição fundamental, e é precisamente este o problema que o bosão de Higgs veio responder.

O bosão de Higgs é então a partículas que se diz que “dá massa” às outras. Mas como é que isso acontece?

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O que faz a diferença em relação às outras partículas do modelo é que a energia potencial do bosão de Higgs tem uma forma de “chapéu mexicano” (ver Figura). Esta forma é perfeitamente simétrica, por isso obedece à invariância da teoria. Mas os estados tendem a escolher a energia mínima, e por isso tendem a escolher um dos muitos possíveis estados à volta do ponto central. Como esses estados já não são simétricos, por isso diz-se que houve uma quebra espontânea da simetria.

Por analogia com a energia gravitacional, se colocar um berlinde no ponto central de uma cavidade com a forma da figura, no início está tudo perfeitamente simétrico. Mas o sistema não é estável, e dentro de pouco tempo o berlinde vai rebolar para o vale, para um dos pontos mais baixos. Nessa altura a simetria é quebrada, mas espontaneamente – não há nada nas equações do movimento que determine a direcção para onde o berlinde rebola. Por isso o princípio da invariância para simetrias é mantido, mas a sua quebra espontânea permite o surgimento dos tais “termos de massa” que são tão necessários... 1

 Por tudo isto se pode ver que o bosão ocupa um papel central na teoria da Física de Partículas moderna. A sua teorização foi feita em 1964 por Peter Higgs e, de forma independente, por outros 5 físicos. No final dos anos 60, foi integrando no modelo de unificação da força electromagnética e fraca por Weinberg e Salam. De seguida, nos anos 70, seria adicionada a chamada “cromodinâmica quântica”, que descreve a interacção forte, completando o Modelo Padrão das Partículas Elementares.

Desde então, todas as previsões do modelo têem vindo a ser sucessivamente verificadas experimentalmente, e com um grau muito elevado de precisão. A descoberta dos bosões W e Z, nos anos 80 no CERN, valeu o prémio Nobel a Carlo Rubbia e Simon van Der Meer. No acelerador LEP, que funcionou também no CERN nos anos 90, foram confirmadas inúmeras previsões teóricas do modelo, e também no acelerador Tevatron, nos EUA. No entanto, faltava ainda o bosão de Higgs...

A sua massa, mais elevada do que a dos outros bosões, e a sua baixa probabilidade de produção, tornavam necessária a construção de um novo acelerador para colidir protões, com uma energia mais elevada e uma maior intensidade. O projecto para o desenvolvimento e construção do Grande Colisionador de Protões (LHC) começou em finais dos anos 80. Começou a funcionar em pleno em finais de 2009. Portugal participou desde o início no desenvolvimento dos detectores associados, no início dos anos 90. Se há projecto científico que necessitou de muita paciência (para além de investimento continuado...), é o LHC!

 A observação recente da partícula que deverá ser o bosão de Higgs fez-se nos dois grandes detectores ATLAS e CMS, através das partículas resultantes da sua desintegração (ou “decaimento”). Os modos de observação mais sensíveis foram os modos de decaimento em dois fotões ou em dois bosões Z, em que cada um decai para dois electrões ou dois muões. No entanto, há muitos processos possíveis que resultam da colisão de dois protões, que podem dar o mesmo tipo de sinal do bosão de Higgs. Os detectores procuram um pequeno excesso no número de eventos observados em relação ao que esperariam se não houvesse bosão. O que dá muita segurança às medições feitas é que ambos os modos de decaimento apontam para uma partícula com a mesma massa, de 125 GeV (133 vezes mais pesado que um protão). Não só, mas os dois detectores, que usam tecnologias muito diferentes, também estão de acordo. Por isso, a probabilidade que o sinal observado seja devido não a uma nova partícula, mas apenas a flutuações estatísticas, é muito baixa, de um em 3 milhões.

Ou seja, falta ainda medir muitas das suas propriedades, mas não há dúvida que foi encontrada uma nova partícula e, para já, parece-se mesmo muito com o bosão de Higgs...

Será que esta descoberta vai revolucionar completamente a Física? A resposta é um pouco subjectiva, mas penso que não é daí que vem o seu interesse. Esta é uma partícula prevista há quase 50 anos, que ocupa um lugar central na teoria que “vigora” na Física de Partículas desde então. A sua descoberta é muito importante, mas é uma confirmação do que se esperava, não o contrário. As próximas novidades na Física poderão vir ainda do LHC, se ao medirmos as propriedades do Higgs, elas não corresponderem bem ao que se espera, ou se encontramos mais do que um.

Um dos grandes mistérios que falta ainda responder, e que não sabemos se está ou não relacionado com o Higgs, é o a da matéria escura, que se observa nas galáxias e na astronomia de larga escala, mas para a qual o Modelo Padrão não tem nenhuma partícula que correponda. Mas isso é uma outra históra...

 José Maneira

Investigador do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP)

Prof. convidado da Fac. Ciências da Univ. de Lisboa

Investigador na experiência ATLAS

 

Links:

http://www.lip.pt/events/2012/HIGGS/

Notas:

1Para quem se estiver a interrogar sobre como surgem os termos de massa, a explicação está relacionada com o facto de o valor do “campo de Higgs” (a coordenada” Φ na figura) não ser 0 para a energia mínima. Quando o bosão de Higgs interage com as outras partículas, é esse valor não-nulo do campo que causa o aparecimento da massa.

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