Materialismo e Ciência Versão para impressão
Terça, 15 Novembro 2011

pensamento

Admite-se correntemente a ideia de que a ciência é materialista e que o materialismo é a filosofia da ciência.

Esta ideia tem referências sólidas na história da filosofia, incluindo em sistemas que nada têm de materialistas. É assim que Descartes, embora desenvolva, no que se refere a Deus e às substâncias pensantes criadas, uma metafísica que deu origem à maior parte das filosofias idealistas dos séculos seguintes, adopta, quanto à substância com extensão, isto é, nos domínios acessíveis às ciências da natureza da sua época, um ponto de vista que corresponde ao tipo e à fonte do materialismo mecanicista. No fim do século XVIII, o idealismo transcendental de Kant, que nega à experiência sensível e ao conhecimento científico qualquer valor absoluto, e limita o seu alcance ao conhecimento dos fenómenos, concede-lhes, neste domínio restrito, uma autoridade completa que lhes permite formular leis segundo os princípios de um determinismo rigoroso, exclusivo de qualquer intervenção de forças espirituais, identificando-se como tal com a inspiração mecanicista da época. Na junção do século XIX com o século XX, Bergerson faz a separação entre a metafísica que se aplica à duaração, à vida e ao espírito, e a ciência, que incide sobre a extensão e a matéria, que é o seu objecto por excelência, assim como a própria ciência, obra da inteligência, é por excelência o modo de conhecimento que convém a esta. E era seguindo Kant que Lange baseava o essencial da sua história do materialismo na ideia de que este é o ponto de vista que adopta e deve adoptar o sábio, embora não possa ser essa a última palavra, pois quando se trata da realidade absoluta, do pensamento e dos valores, o idealismo retoma os seus direitos. Esta conexão do materialismo com a ciência, assim reconhecida por filósofos que, para limitar o seu alcance, são levados a limitar o da ciência, é reivindicada sem limitação pela parte dos pensadores materialistas, como os epicuristas, para quem o único conhecimento efectivo, que se aplica à realidade total, é a física atomista, ou os materialistas do século XVIII, que invocam tanto a química, as ciências naturais e a medicina do seu tempo como a mecânica cartesiana, ou ainda os marxistas, que afirmam a ligação do materialismo ao conjunto das ciências, e procuram, como tentou Engels, apoiar esta afirmação na história das ciências.

Com efeito, esta última parece dar razão ao materialismo em muitos aspectos. Cada uma das descobertas e revoluções científicas dos tempos modernos permitiu um avanço das doutrinas materialistas, destruindo ou abalando os obstáculos com que eles [se] deparavam ao fornecer-lhes novos argumentos. O copernicanismo abriu caminho à ideia da unidade material do universo, tanto no céu como na Terra. A elaboração dos princípios de constância em mecânica, no século XVII, não deixando lugar para a intervenção das forças espirituais no jogo dos movimentos dos corpos, justificou a generalização do materialismo mecanicista, da mesma maneira que, nos séculos seguintes, o alargamento dos princípios da constância e o processo de unificação crescente das leis e determinação físicas, alargou o campo e a compreensão do materialismo nestes domínios. Posteriormente, a inclusão dos fenómenos vitais e dos comportamentos humanos nas perspectivas científicas, contribuiu para derrubar as barreiras que encerravam as concepções materialistas dentro do domínio da «matéria bruta», etc.

Não devemos, no entanto, estabelecer uma equação pura e simples entre ciência e materialismo: devem ter-se em conta as diferenças de perspectivas e do plano entre um e outra, bem como as consequências que elas implicam.

É no princípio destas diferenças – distância entre a ciência como tal e a filosofia, da qual o materialismo é uma forma, ou uma opção, que insistem os filósofos que aceitam dar um lugar ao ponto de vista materialista no que se refere à metodologia científica, mas lhe recusam valor absoluto no plano puramente filosófico. Neste aspecto, o materialismo, entendido como uma metafísica que reduz todas as formas do ser a manifestações de uma substância material caracterizadas pelas propriedades que regem as leis da mecânica, seria uma extrapolação infundada, à qual são opostas objecções tradicionais: incomensurabilidade entre os movimentos mecânicos e o fenómeno da consciência, o que já pressupõe este último na sensação pela qual se estabelece a existência da matéria, etc. Daí a limitação radical que inclui a perspectiva materialista, e a própria ciência, num quadro onde as verdades filosóficas seriam reservadas a uma metafísica do espírito, real, possível, ou apenas sonhada. O positivismo, por seu lado, negando qualquer legitimidade à metafísica em geral, conduz a uma limitação análoga: a ciência, incidindo apenas nas relações entre fenómenos, estabelecidas por, e dentro, dos limites da experiência, e nas operações lógicas que se podem aplicar aos seus resultados, não tem nada a dizer sobre uma realidade em si. A pretensão do materialismo de se apoiar na ciência, ficaria portanto destruída desde o princípio, porque a ciência não tem alcance filosófico, e o materialismo é uma metafísica.

Esta pretensão, por sua vez, arrisca-se a provocar confusão de planos, com as distorções, reduções e mesmo perversões que daí podem resultar: eliminação da filosofia, e mesmo do próprio materialismo, em nome da ciência toda-poderosa (o «cientismo»), ou, pelo contrário (mas os contrários também podem ser próximos um ao outro), submissão da ciência, dos seus métodos, programas, ou mesmo dos seus resultados, a a priori filosóficos que se pretende serem tirados do materialismo (caso do dogmatismo marxista desenvolvido na época estalinista, da qual o «caso Lyssenko» é a ilustração mais memorável).

A história das ciências também não poderia ser compreendida de uma ponta à outra como uma lição do materialismo. É necessário ter em conta o papel desempenhado, em momento e sobre pontos fundamentais, por representações idealistas. Isto é particularmente claro nos casos das matemáticas por um lado (pensemos nas concepções dominantes que animavam e percorriam a geometria antiga, e na tendência permanente dos matemáticos em verem nos objectos da sua ciência não só uma pura produção do espírito, mas sim realidades autónomas), da biologia por outro lado (foi possível demonstrar a importância que o «vitalismo» teve nos séculos passados para apreender o carácter específico dos organismos e das suas propriedades), mas encontra-se também certamente nas próprias ciências da «matéria» - física astronomia, etc.; pelo menos, não há dúvida de que as ideias de ordem, harmonia, lei natural …, constitutivas da epistemologia dos tempos modernos, forma apreciavelmente reforçadas pelo racionalismo metafísico da era clássica. De uma maneira geral, como ignorar que, em cada momento da história, os diferentes dados científicos: resultados, problemas, investigações e conceitos, são objecto e ocasião para interpretações e desenvolvimentos idealistas?

É portanto necessário, também aqui, ter em conta a diferença de planos. De um lado, o conhecimento científico, a contas com a realidade por via da conceptualização operatória e de técnicas experimentais que, incidindo sobre um campo determinado de objectos, se condicionam uma à outra e atingem resultados que, para além de serem, necessariamente e parcialmente postos em causa, comportam uma aquisição definitiva. Do outro lado, as concepções filosóficas, que não dizem respeito directamente a tais objectivos, mas que pretendem, por intermédio privilegiadamente do conhecimento científico, aprender ou definir as estruturas do campo do real e do saber, no seu conjunto, sem que a sua validade respectiva possa ser prejudicada por uma operação lógica ou por um determinado resultado experimental. Diferença, portanto, entre as verdades científicas e a perspectivação filosófica, de tal maneira que não se pode estabelecer uma relação imediata entre as primeiras e a significação ou o impacto materialista que a segunda pode nelas introduzir: é somente através de um longo período, e numa visão global, que o movimento científico evolui no sentido do materialismo, e que se pode pensar que aquilo que, no pensamento científico, é num dado momento idealista, está, ao fim e ao cabo, condenado a desaparecer. E mesmo para defender a opinião de que, na prática e na teoria científica como tais, o idealismo não desempenha qualquer papel, é necessário um olhar filosófico para o demonstrar.

Olhar este que não pode deixar de ser discreto: se a intervenção de uma reflexão materialista pode, como reflexão crítica, ajudar a consciência do saber a ultrapassar as ambiguidades ou incertezas que a entravam, não lhe é possível decidir nem deduzir leis em seu lugar. E o materialismo, por seu lado, tem a difícil tarefa de elaborar conceitos adaptados à situação presente, e se possível futura, do desenvolvimento científico.

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le_materialismeNota: Olivier Bloch (1930- ) é um historiador da filosofia, especialista nas doutrinas, correntes e tradições materialistas.  É autor das seguintes obras:  L'idée de Révolution : Quelle place lui faire au XXI siècle? (P U de Paris-Sorbonne 2010); Molière : Comique et Communication (Le Temps des cerises 2009); Philosopher en France sous l’occupation (Publications de la Sorbonne 2009); Traduire les Philosophes (Publications de la Sorbonne 2000); Matieres à Histoires : Le Materialisme de l'Antiquité a nos jours (Vrin 1997); Parité de la vie et de la mort (Voltaire Foundation 1993); O Materialismo (Europa-América 1987); La philosophie de Gassendi. Nominalisme, matérialisme et métaphysique (Nijhoff, La Haye 1971). Entre as obras colectivas em que participou, destaque para: com P. Macherey, H. Politis e J. Salem Spinoza au XXe siècle (PUF 1993); Spinoza au XVIIIe siècle (Les Méridiens-Klincksieck 1990); Epistémologie et matérialisme, (Les Méridiens-Klincksieck 1986); Le matérialisme du XVIIIème siècle et la littérature clandestine (Parigi 1982).

http://www.puf.com/wiki/Auteur:Olivier_Bloch:Olivier_Bloch

 

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