A NOVELA DA PRIVATIZAÇÃO DA RTP, MARXISMO E O FIM DA MODERNIDADE PORTUGUESA Versão para impressão
Terça, 26 Julho 2011

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1 - Prezado leitor, sabe qual a mais valiosa comodidade do mundo, pela qual se mata e se morre, pela qual democracias e ditaduras lutam sem tréguas e sem misericórdia? Petróleo, Ouro, Terra Pátria?

A resposta é… nenhuma das três, a mais valiosa comodidade não transaccionável no mundo em que vivemos é a…percepção.

Não se morre e não se mata por um líquido negro e viscoso, um metal amarelado sem grande utilidade ou um pedaço de terra da qual não se retira sustento, mata-se sim, pela percepcção de valor que o capital lhes atribui e a cuja defesa (através da guerra) ou obtenção (pelo roubo) somos obrigados enquanto titulares e accionistas de uma sociedade capitalista em nome de outra comodidade ainda menos real do que as anteriores, e que se chama “nível de vida”.

E é por esta razão (mas não só) que este vosso modesto escriba de serviço, é marxista. O marxismo é a única corrente filosófica, baseada na observação da realidade, que coloca sempre as capacidades e necessidades humanas à frente da percepção de valor imposta pelos mercados.

Para este vosso autor, a vitória aparente do capitalismo não se deve a uma perda de coerência intelectual ou ideológica do socialismo, mas sim à derrota progressiva numa batalha que lhe decorre paralelamente, a batalha pela percepção da realidade.

Quando esta batalha se iniciou, no Séc. XIX, ideais socialistas de esquerda e ideais liberais de direita disputavam o terreno da percepção dos povos na imprensa, o mais barato e acessível dos média, publicavam-se na europa milhares de títulos, em Portugal, centenas, todos os campos políticos tinham o seu jornal e a sua agenda.

Partindo em igualdade de circunstâncias e com o “jogo equilibrado”, o socialismo chegou mesmo a ganhar terreno nesta batalha, permitindo o nascimento e desenvolvimento dos movimentos anarco-sindicais e subsquente fundação de partidos de esquerda por todo o mundo.

Com a chegada da complexidade tecnológica da rádio, o campo socialista, por inerência desprovido de meios financeiros começou a perder terreno, por sua vez o capital, que tinha sido ferido com o surgimento do movimento sindical, apercebe-se disso e começa a investir em massa na rádio e entretenimento cinematográfico, quando finalmente chega a televisão, dá-se o cheque mate (temporário) ao ideal solidário.

Por todo o mundo, nos televisores vendidos a baixo preço a uma massa humana saída de duas guerras mundiais, dá-se conta das gloriosas vitórias industriais do capitalismo e do radioso futuro que os “capitães da indústria” económica e social delinearam caridosamente para a prole que então começava a consumir como nunca, vivíamos sob a “Pax Americana” …e nada, nada poderia correr mal.

Mas nem tudo correu bem, com a Pax Americana, veio também a “californicação” cultural do planeta.

Fomos convencidos que o modelo americano tinha ganho a guerra fria porque era mais justo, mais poderoso, porque o capitalismo e a busca do lucro era inerente à nossa natureza, a verdade é que apenas tinha uma melhor agência de comunicação, e esta chamava-se Hollywood.

O cowboy justiceiro e o guerreiro musculado de metralhadora saquearam a cultura e a arte europeia, que primeiro se viu subtraída dos seus técnicos e pensadores, depois secundarizada e por fim ignorada, no resto do mundo culturas inteiras definharam e morreram.

Onde estão hoje os nossos Fritz Langs, o nossos Bergmans, onde está a cultura de matriz europeia que existia antes das duas guerras mundiais?

As ditaduras fascistas e social-fascistas de inspiração soviética, aproveitaram bem a rádio e principalmente a televisão para se prolongarem no poder, construindo a narrativa de percepção de que tudo decorria na normalidade, a censura transforma-se numa indústria com o fim último de calar a violência e a tortura de povos inteiros.

A esquerda democrática e progressista que procura soluções, não é só silenciada, é pior do que isso, ridicularizada.

Nas sociedades capitalistas, democráticas, pseudo-democráticas ou ditatoriais, quem controla a percepção não controla a economia, a industria, ou o voto… controla tudo.

Um homem já não é obrigado pelo seu senhor feudal pela força de espada a ser servo toda a sua vida, é, isso sim, convencido a isso pela indústria da perceção.

É convencido a ser escravo de um banco, viver segundo uma imagem cultural que despreza a sua tradição e identidade, a destruir a sua vinha ou o seu barco de pesca e a mandar os seus filhos morrer em guerras que não entende. E fá-lo de forma voluntariosa e agradecida porque lhe é moldada a percepção de que tudo isto é no seu interesse, pela formatação televisiva a que se sujeita quase todos os dias da sua vida às 20 horas locais.

O capital apercebe-se de uma verdade fundamental, a televisão não é um fim, é um meio.

Surge a indústria do comentário, a Fox News, o senhor Murdock, e as variadas formas de “News of The World”.

2 - Háverá esperança?

Talvez, com o advento a internet mas principalmente com o crescimento explosivo das redes sociais e sua capacidade de mobilização cívico-política, veja-se o caso das revoltas árabes, muitos acreditam que o capitalismo poderá ter criado acidentalmente a arma que causará o seu declínio.

Outros porém vêem nos recentes desenvolvimentos de software militar justificados pela “guerra ao terror”, que analisam textos e comportamentos de milhares de utilizadores de redes sociais por segundo, listam os “perigosos agitadores” e com um clique de botão os eliminam da rede, substituindo-os por operadores remotos capazes de gerir mais 50 contas de facebook ao mesmo tempo, como o “antídoto” do capitalismo contra os perigosos riscos que a liberdade de transmissão de conhecimento lhe coloca.

Talvez esse venha a ser o grande combate da esquerda moderna, o combate pela liberdade de partilha de informação e com ela a liberdade de opinião.

Se calhar, mais importante que lembrar Che, será lembrar Assange e o soldado Manning.

A RTP

Nos estados democráticos onde se reflectiu a sério, sobre o incrível poder da televisão na percepção humana, e o perigo que o seu controlo por interesses externos ao Estado poderia colocar em relação à própria natureza da democracia, rápidamente se chegou à conclusão que este não era um meio onde os abusos pudessem ser controlados por uma entidade governamental externa castrada, que conseguisse intervir na edição televisiva, mas sim através da capacidade do estado em intervir “no mercado” como operador.

Ou seja, chegou-se à conclusão que o mercado da televisão não se controla, equilibra-se.

Por todo o mundo (inclusive nos EUA), foram criados operadores públicos de televisão que coexistem com privados, esta organização do mercado mantem-se como a regra que na maior parte dos casos nem sequer é debatível. Em Espanha, França, Itália e principalmente Inglaterra o serviço público de televisão não só é defendido como é considerado absolutamente estratégico na defesa do regime democrático, da soberania e da cultura local, é assim em toda a Europa.

Em toda na Europa, menos em Portugal onde a elite “jotinha” adepta de um liberalismo que aprendeu em Valpaços se prepara para matar o serviço público de televisão através da privatização da RTP.

3 - Eis o seu último acto.

O Leitor talvez não se aperceba, mas neste momento por debaixo das camadas de cristais líquidos que constituem o ecrã do seu televisor decorre uma guerra, e o prémio é você.

Mais concretamente a sua percepção da realidade que o cerca.

Esta guerra cujo prémio é você, tem dois lados, duas empresas, dois homens, e uma baixa colateral, a RTP.

Por um lado, temos o Grupo Ongoing do aristocrático Nuno Vasconcellos (com dois ll como manda a praxis marialva) e, pelo outro, temos o decano liberal do país, o excelentíssimo, reverendíssimo e sereníssimo Dr. Pinto Balsemão.

O Sr. Vasconcellos, lidera um grupo económico de natureza familiar cuja pujança económica recente levanta algumas dúvidas entre os clássicos da praça portuguesa.

Este grupo, apropriadamente designado Ongoing – Strategy Investements (Ongoing – Investimentos Estratégicos), quer ser um jogador no mercado da percepção nacional, não porque a televisão seja um grande negócio diga-se, mas porque aquilo que ela se habituou a comercializar, a opinião, e a troco deste comércio vêm vantagens comerciais incalculáveis para um grupo “diversificado” como o Sr. Vasconcellos.

Assim o empresário de sangue mais azul que Pinto da Costa, delineou uma estratégia de aquisição progressiva de meios de informação com prioridade, claro, para a televisão, e para a executar, contratou a preços muito acima do valores de mercado, um profissional de inegável reputação e ética jornalistica, chamado José Eduardo Moniz.

Tentou entrar em força na TVI, sem efeito, tentou romper pelo grupo Impresa e foi impedido pelo restante capital accionista, onde é desprezado.

Falhadas que foram as tentativas de take-over mais ou menos violentas dos dois operadores privados de televisão, a Ongoing, deslindou então uma outra opção, uma terceira via por assim dizer, o ataque ao operador público e ao seu canal mais rentável, a RTP1.

Para isso eram necessário duas coisas, uma tutela política colaborante e uma conjuntura de opinião pública favorável.

Não tendo sorte com o PS de Sócrates que prometia muito sem nunca entregar nada, e que ainda por cima odiava Moniz e a esposa, Manuela Moura Guedes, era necessário esperar, mas não muito.

A primeira surgiu quando foi óbvio o fim de ciclo socratista, a segunda foi fornecida pela Troika, com a sua política do medo e destruição do Estado para a qual foi necessária a vitória da percepção liberal de que era preciso vender os dedos para salvar os cotos.

Publicaram-se notícias atrás de notícias (muitas falsas) no pasquim oficial do grupo, o “Jornal Económico”, sobre o estado calamitoso a que tinha chegou a RTP, tiveram-se reuniões na São Caetano à Lapa, fizeram-se promessas, apoios financeiros para um partido com uma dívida brutal à banca. Tenta-se criar um estado de graça artificial para o “jotinha” de Trás-Os-Montes, e por fim a privatização do canal público é colocada no nada secreto projecto de programa de governo.

O que leva à entrada em cena do segundo actor desta nossa novela, o Sr. Balsemão, líder histórico do Grupo Impresa, que se encontra em sérias dificuldades, mesmo após uma bem orquestrada campanha de lobbi, que acompanhada por um ataque frontal ao serviço público, conseguiu obter uma lei de televisão que retirou minutos de publicidade à RTP, num montante calculado em cerca de 50 milhões ano.

Ou seja através da simples pressão política, os dois operadores privados de televisão em Portugal, conseguiram a proeza de financiar os seus lucros retirando-os indirectamente do Estado, acusando o operador público de ser despesista, o Estado esse que para manter a empresa a funcionar teve de lhe aumentar as dotações financeiras.

Facto que claro, foi imediamente, criticado pelos média ligados aos grupos económicos acarinhados com esta benesse.

Com a Impresa em dificuldades a última coisa que o Sr. Balsemão queria ou precisava era mais um operador no mercado sem as mãos amarradas atrás das costas, como a RTP, não existe espaço para três, é a ruína financeira para um deles, e assim coloca os seus homens no terreno, leia-se no partido cuja inexistência ideológica ajudou a formar.

Mais uma vez têm-se reuniões na São Caetano à Lapa, cobram-se os favores, (afinal Passos Coelho é ou não uma criação da SIC Notícias?), usa-se até, imagine-se, a importância do serviço público para a democracia e soberania, por fim fazem-se ameaças de ruína económica e pessoal, e resulta, o programa é reescrito e a privatização do canal público passa para “momento oportuno”, o que em política quer dizer nunca.

Para este PSD os argumentos que colhem não são os da defesa do Estado, são os da defesa do mercado.

É por fim outro Coelho, desta vez Jorge de seu nome, quem dá o toque de “a continuar nos próximos capitulos” desta estória, quando no programa “A Quadratura do Circulo” afirma em tom velado e semi misterioso, que “o adiamento da privatização do canal público ainda vai causar alguns dissabores a este governo” …ele lá sabe.

Mas como está a RTP? Eu sindicalista e trabalhador da empresa à 20 anos me confesso.

A RTP está indefesa, fruto de anos de incúria de gestão por administradores criminosamente incompetentes e incapazes, mais preocupados em resguardar a sua fraca imagem de gestores cordatos, do que em defender a empresa dos ataques de que foi alvo pelas suas concorrentes, a que se juntam pseudo estrelas mediáticas que nada farão que possa beliscar o seu mercado de emprego futuro, (afinal o ramo é curto de opções e nunca se sabe as voltas que a vida dá, não é?)

Restam os trabalhadores, impedidos de organizar uma forma de luta coerente, tolhidos pela apatia generalizada, devido a uma cultura interna de empresa que durante anos os levou a acreditar que faziam parte de uma espécie de “aristocracia proletária”.

Trabalhar na televisão, até à alguns anos, era ser uma pessoa importante, tinha “glamour”, um funcionário da RTP nada tinha a ver com a trabalhadora têxtil que perdia o emprego e protestava na porta da fábrica, e de certeza que nada tinha a ver com essas pessoas “estranhas” que na rua protestavam por melhores salários e melhores condições de vida.

Se antes se usava o cartão da emprea para ter acesso a discotecas e espectáculos, hoje alguns têm vergonha de dizer que lá trabalham.

Alguns acordaram recentemente para a realidade, outros só agora o estão a fazer, ambos o fizeram tarde demais, o despedimento de trabalhadores altamente especializados com um mercado de trabalho muito curto representará um decréscimo brutal na qualidade de vida de centenas, senão milhares de famílias.

Não me compreendam mal, este não é texto de defesa de emprego ou status quo.

Eu não defendo a RTP que tenho, defendo a RTP que poderia ter, a programação do principal canal, a RTP1, não se diferencia nem em qualidade nem em estratégia da concorrência privada.

Não existe programação cultural (teatro não existe, dança ou música de qualidade estão desaparecidos), a RTP2, é uma manta de retalhos com uma visão “brega” do que é a cultura, a RTP Memória limita-se a passar filmes de arquivo sem enquadramento geral, a RTP Madeira e Açores parecem estar a transformar-se em órgãos oficiais dos governos regionais com o fim último de anunciarem as inaugurações do dia, a RTP África e Internacional, não obedecem a nenhuma lógica coerente de defesa da língua no espaço lusófono.

Com a extinção da empresa pública corre-se ainda o risco criminoso de vender o arquivo da RTP a privados a troco da módica quantia de um euro, o que seria o equivalente moral da venda do espólio da Torre do Tombo à revista “Maria”, para esta fazer reciclagem de papel.

A privatização do principal canal significa apenas uma coisa, o fim da RTP, e com o fim da RTP Portugal entra no estrito lote de países DO MUNDO, sem serviço público de televisão, o Estado desarma-se junto do “quarto poder” e nada, mesmo nada, será como dantes, nem terá volta atrás, completa-se o projecto de latino-americanização deste cantinho da Europa, em que o populismo e a influência mediática irão condicionar todo o pensamento social, cultural, económico e político.

Este é o país da Europa que mais horas de televisão consome.

Este é o país de Rangel, de Moura Guedes e do seu “Jornal Nacional”, da suposta imparcialidade de Marcelo Rebelo de Sousa e Maria João Avillez, do Preço Certo e onde o líder de audiências chama-se “Perdidos na Tribo” e tem como estrela José Castelo Branco.

Será o habitáculo oco de um povo acrítico e teleformatado que quanto mais dócil for mais fácil será de conduzir pelos anos da Troika de forma serena, sem sobressaltos.

É o regresso ao provincianismo do Estado Novo e o fim da modernidade de Portugal.

 

Paulo Mendes, sindicalista e funcionário da RTP.

 

O que você deveria saber sobre a RTP, mas a Ongoing não lhe conta:

1º Sabia que todos os países da Europa comunitária e inclusive os Estados Unidos tem serviços públicos de televisão, e que o modelo misto de mercado que existe em Portugal é a regra e não a exeção?

2º - Sabia que o serviço público de televisão prestado pela RTP é não só um dos mais baratos da Europa, é também um dos mais baratos do mundo? Custa cerca de 15 centimos por dia, não por pessoa, mas por contador de luz.

3º Sabia que por esses 15 centimos são emitidos diariamente 8 canais de televisão com programação diferenciada (RTP1, RTP2, RTPN, RTP Memória, RTP África, RTP Internacional, RTP Madeira, RTP Açores) 5 antenas de rádio (Antena 1, Antena 2, Antena 3, RDP África e RDP Internacional), com uma audiência potencial de cerca de 150 milhões de pessoas?

4º Sabia que a RTP possui o maior e melhor arquivo audiovisual do país e um dos melhores do seu género em todo o mundo?

5º Sabia que os trabalhadores da RTP são dos mais produtivos do sector televisivo europeu, recebendo menos salário liquido do que os seus congéneres no privado e que auferindo em média 50% do que os seus colegas europeus?

6º - Sabia que os trabalhadores da RTP não têm aumentos salariais reais desde 2003, sendo os trabalhadores do sector estado os que mais percentual de poder de compra perderam numa década?

7º Sabia que a publicidade da RTP não entra para os seus cofres mas está sim indexada ao pagamento de um empréstimo bancário a um sindicato bancário alemão e holandês, que assumiram o passivo?

8 – Sabia que essa dívida ronda os 600 milhões de euros a um spread baixíssimo, e que este sindicato deseja renegociar o empréstimo à anos?

9 – Sabia que no caso da RTP ficar sem publicidade o accionista Estado teria que assumir o pagamento da dívida, mais juros por inteiro e de imediato?

10 – Sabe que pagará a dádiva de um canal à Ongoing pelo governo de Passos Coelho? Você e vai custar-lhe 600 milhões de euros.

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