Centenário da I Guerra Mundial Versão para impressão
Segunda, 13 Outubro 2014

centenário da i guerra mundialA 28 de Julho decorreu um século sobre o início da primeira grande carnificina do século XX: a Guerra Mundial de 1914-18 que matou mais de 10 milhões de soldados e 9 milhões de civis. A sua principal consequência política foi a revolução soviética de Outubro de 1917, cujo primeiro ato foi decretar a paz.

 

Artigo de Alberto Matos - A Comuna 32 (II semestre, outubro 2014) pp. 4-8

 

A eclosão da guerra não constituiu surpresa, ela estava em gestação pelo menos desde o início do século. As suas origens remontam à Conferência de Berlim de 1884-85 que traçou o mapa colonial de África, "a régua e esquadro", entre as grandes potências europeias – Inglaterra, Alemanha, França – e outras menores – Portugal, Bélgica, Espanha e Itália.

Aliás, a dominação colonial não se restringia a África. Na Europa, os Balcãs eram dominados pelos impérios Austro-Húngaro e Otomano; as independências da Grécia, da Sérvia e da Itália eram historicamente recentes; a Finlândia e os estados bálticos eram domínios do czar russo, que repartia a Polónia com o kaiser alemão e o imperador austro-húngaro. Na Ásia despontava o "império do sol nascente", o Japão, enquanto países de dimensão continental – a Índia, a China e praticamente toda a Indochina – sofriam o jugo colonial ou semicolonial.

O redesenho do atlas mundial correspondeu à fusão do capitalismo industrial, triunfante no século XIX, com o capital bancário, gerando um predomínio absoluto do capital financeiro. O "Imperialismo, estádio supremo do capitalismo", de Lenine, é obra de referência na caracterização desta nova época, estudada também por outros autores marxistas.

 

Preliminares da guerra

Em 1914, no curto espaço de um mês, os acontecimentos precipitam-se:

- 28 de Junho – O Arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono Império Austro-Húngaro é assassinado em Sarajevo, capital da Bósnia, pertencente ao Império Austro-Húngaro. O estudante sérvio Gavrilo Princip, presumível autor do atentado, fazia parte da "Bósnia Jovem", aliado do grupo nacionalista pró-sérvio "Mão Negra".

- 21 de Julho - Sob pressão da Alemanha, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Império Austro-Húngaro apresenta um ultimato a Belgrado responsabilizando a Sérvia pelo atentado de Sarajevo e exigindo a participação da polícia austríaca nas investigações – pretensão recusada pelo governo sérvio como uma afronta à soberania.

28 de Julho – Em face desta recusa, o Império Austro-Húngaro declara guerra à Sérvia; a Rússia responde enviando tropas para a fronteira austro-húngara.

- 31 de Julho - O czar decreta a mobilização geral, antecipando-se à estratégia militar alemã que previa um rápido ataque à Rússia (aliada da França) enquanto esta ainda estivesse no início da mobilização.

1 de Agosto - A Alemanha declara guerra à Rússia e à França a 3 de Agosto, invadindo de imediato o Luxemburgo e Bélgica para dominar fortificações ao longo da fronteira francesa.

4 de Agosto - A O império britânico declara guerra à Alemanha, em resposta à invasão da Bélgica. Com esta declaração, cinco das seis grandes potências europeias envolvem-se na primeira guerra à escala continental desde as guerras napoleónicas.

 

Internacionalismo contra a guerra imperialista

"A guerra e a social-democracia russa", escrita por Lenine em Setembro de 1914, resume o essencial dos acontecimentos do Verão trágico de 1914:

"A guerra europeia, preparada durante décadas pelos governos e pelos partidos burgueses de todos os países, rebentou. O aumento dos armamentos, a extrema agudização da luta pelos mercados no estádio atual, imperialista, de desenvolvimento do capitalismo nos países avançados e os interesses dinásticos das monarquias mais atrasadas, as da Europa Oriental, deviam conduzir inevitavelmente, e conduziram, a esta guerra. Conquistar terras e subjugar nações estrangeiras, arruinar a nação concorrente, saquear as suas riquezas, desviar a atenção das massas trabalhadoras das crises políticas internas da Rússia, Alemanha, Inglaterra e de outros países, a desunião e o entontecimento nacionalista dos operários e o extermínio da sua vanguarda com o objetivo de debilitar o movimento revolucionário do proletariado — tal é o único real conteúdo, significado e sentido da atual guerra.

À cabeça de um grupo de nações beligerantes está a burguesia alemã. Ela engana a classe operária e as massas trabalhadoras, assegurando que faz a guerra para defender a pátria, a liberdade e a cultura, para libertar os povos oprimidos pelo czarismo, para destruir o czarismo reaccionário. Mas é precisamente esta burguesia, que rasteja diante dos junkers prussianos com Guilherme II à sua frente, que sempre foi a aliada mais fiel do czarismo e inimiga do movimento revolucionário dos operários e dos camponeses da Rússia. De facto esta burguesia, juntamente com os junkers, dirigirá todos os seus esforços para, qualquer que seja o resultado da guerra, apoiar a monarquia czarista contra a revolução na Rússia.

À cabeça do outro grupo de nações beligerantes encontra-se a burguesia inglesa e francesa, que engana a classe operária e as massas trabalhadoras, assegurando que faz a guerra pela pátria, pela liberdade e a cultura, contra o militarismo e o despotismo da Alemanha. Mas esta burguesia já há muito que alugou e preparou, com os seus milhares de milhões, as tropas do czarismo russo, a monarquia mais reaccionária e bárbara da Europa, para atacar a Alemanha. De facto o objectivo da luta da burguesia inglesa e francesa é conquistar as colónias alemãs e arruinar a nação concorrente, que se distingue por um desenvolvimento económico mais rápido. E para este nobre fim as nações «avançadas», «democráticas», ajudam o selvagem czarismo a sufocar ainda mais a Polónia, a Ucrânia, etc. e a esmagar a revolução na Rússia.

Nenhum dos grupos de países beligerantes fica a dever nada ao outro no que diz respeito às pilhagens, às atrocidades e à interminável crueldade da guerra. Mas para enganar o proletariado e desviar a sua atenção da única guerra verdadeiramente libertadora, isto é, da guerra civil contra a burguesia tanto do «seu» país como dos países «alheios», para atingir este elevado fim, a burguesia de cada país procura exaltar com frases falsas sobre patriotismo o significado da «sua» guerra nacional e assegurar que aspira a vencer o inimigo não para a pilhagem e a conquista de terras, mas para «libertar» todos os outros povos, salvo o seu.

A transformação da atual guerra imperialista em guerra civil é a única palavra de ordem proletária justa, indicada pela experiência da Comuna, apontada pela resolução de Basileia (1912) e decorrente de todas as condições da guerra imperialista entre os países burgueses altamente desenvolvidos. Por muito grandes que pareçam ser as dificuldades de tal transformação em dado momento, os socialistas nunca renunciarão ao trabalho preparatório sistemático, persistente e contínuo nesta direcção, já que a guerra se tornou um facto".

 

A social-democracia face à guerra

 

O movimento operário, agrupado na II Internacional, não foi colhido de surpresa pelo deflagrar do conflito, primeiro europeu e depois mundial. Desde Estugarda, em 1907, que todos os congressos da II Internacional apelavam à luta contra a guerra imperialista em preparação. O Manifesto de Basileia, aprovado por unanimidade, em 25 novembro de 1912, prevenia os povos sobre os objetivos espoliadores desta guerra e exortava os operários de todos os países a travar uma luta decidida pela paz, «contrapondo ao imperialismo capitalista a força da solidariedade internacional do proletariado». Caso a guerra eclodisse, os socialistas lutariam para converter a crise económica e política no desencadear da revolução socialista.

Na hora da verdade, porém, os partidos social-democratas dos países beligerantes traíram o internacionalismo e os seus parlamentares votaram a favor dos créditos de guerra. Como Kautsky, na Alemanha, cada chefe da social-democracia apoiou "o seu" próprio imperialismo, substituindo a palavra de ordem "proletários de todos os países uni-vos" por "proletários de todos os países, matai-vos uns aos outros" para glória e lucro do capital.

Só uma minoria permaneceu fiel ao internacionalismo proletário: os bolcheviques na Rússia; Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht na Alemanha; James Connolly, herói da la luta de libertação da Irlanda, assassinado pelos ingleses em 1916; e outras fracções minoritárias da social-democracia em diversos países.

Em plena guerra, o destino destes internacionalistas andou entre o fuzilamento, o exílio, a clandestinidade ou a prisão, de onde Rosa Luxemburgo escreveu a célebre brochura de Junius: "A crise da social-democracia", em Abril de 1915, é um brilhante e violento labéu de acusação ao imperialismo fautor da guerra e aos chefes social-democratas que perante ela capitularam. Em 15 de janeiro de 1919, após a derrota da revolta spartakista na Alemanha, Rosa foi assassinada sob um governo social-democrata.

 

Um século de capitulação da social-democracia

 

Em 2014, com o centenário da I Guerra Mundial, assinala-se também um século de capitulação da social-democracia que cindiu o movimento operário e levou à criação da III Internacional (Comunista) em 1919, depois do triunfo da Revolução de Outubro.

Em cem anos a traição da social-democracia aprofundou-se e mudou de qualidade. De meros lacaios a que o capital pode recorrer, se necessário em funções governativas, os chefes social-democratas transformaram-se em seus gestores e representantes diretos.

Apesar do papel positivo de alguns partidos socialistas nas Frentes Populares e de milhares dos seus membros terem sido assassinados pelo nazi-fascismo, a social-democracia manteve uma ligação umbilical ao imperialismo, acentuada durante a "guerra fria". Com o advento do neoliberalismo e da "terceira via" de Blair, os social-liberais não se limitam a votar orçamentos de guerra nos parlamentos: tornaram-se paladinos e executivos da guerra infinita que provoca excitação nos mercados financeiros e se tornou condição da sua sobrevivência.

Um século após a carnificina de 1914-18, da social-democracia só resta um vago liberalismo, cada vez mais apêndice da direita ultraconservadora – veja-se a cedência do governo Hollande à onda xenófoba. O SPD que salvou o imperialismo alemão na república de Weimar e serviu de alternância até há uma década, fornece hoje o ministro das Finanças da kaiserin Merkel. E o restante panorama europeu não é brilhante, incluindo o ibérico.

Alguma esquerda equivocada que, hoje, procure alianças na social-democracia arrisca-se a ser vítima da velha máxima: "com amigos destes, ninguém precisa de inimigos...".

 

A história não se repete, mas...

 

Um século depois da I Guerra, não são menores os focos de tensão internacional e na própria Europa, se comparados com os factos aparentemente aleatórios que, em Julho de 1914, desencadearam um conflito mundial. A gravidade da situação na Ucrânia – numa disputa que envolve pelo menos a Rússia, a UE e os EUA – ultrapassa de longe o atentado contra o arquiduque austro-húngaro em Sarajevo, a que Lenine chamou "um acidente profissional dos reis". As sequelas da desagregação da URSS e a recomposição do império russo, sob a égide das máfias privadas, estatais ou para-estatais, ameaçam mesmo ultrapassar, em selvajaria e dimensão, as guerras dos Balcãs na década de 90 do século XX.

Mas mudou o essencial: o contexto imperialista que há muito ultrapassou as fronteiras das coutadas de cada potência colonial e se globalizou, multiplicando as interdependências à velocidade eletrónica a que pulsam as bolsas. Se há menos de um século "o sol nunca se punha no império britânico", hoje a ciranda financeira funciona 24 horas por dia – e entrar em "off" seria sinónimo de desastre iminente.

Os mercados não dispensam a guerra, tornaram-na permanente e cada vez mais lucrativa. O imperialismo global não é menos agressivo, pelo contrário, multiplica cenários de guerra: em África e no Médio Oriente, na Ásia e em plena Europa. A crise ucraniana dificilmente degenerará em conflito global, até pelo perigo nuclear que encerra, mas ameaça tornar-se uma guerra regional de dimensões trágicas.

Como há cem anos, os comunistas e a esquerda internacionalista não devem alinhar atrás de nenhuma das fações em guerras de bandidos. A alternativa à barbárie, por mais difícil que hoje pareça, é o socialismo. A revolução, eterna namorada dos povos, não faltará à chamada no século XXI.

 

Portugal na guerra

A entrada oficial de Portugal no conflito ocorreu em 1916, na sequência da declaração de guerra por parte da Alemanha, em 9 de março, após a apreensão dos navios alemães e austro-húngaros ancorados na costa portuguesa, a pedido da Inglaterra. Mas, desde outubro de 1914, contingentes portugueses com perto de 1600 militares foram enviados para Angola e Moçambique, sofrendo severos desaires em combate com forças alemãs junto às fronteiras da Namíbia (Sudoeste Africano) e da Tanzânia, colónias alemãs até 1919.

O governo do Partido Republicano, chefiado por Afonso Costa, procurou a legitimação internacional da República de 1910 pela pior via possível: a entrada na guerra ao lado da Inglaterra – a "velha aliada" – que, com o ultimato de 1889 sobre o "mapa cor-de-rosa", contribuiu para o isolamento do regime monárquico. Inglaterra que, aliás, tentou retardar o mais possível a entrada de Portugal na guerra, pois pretendia abocanhar total ou parcialmente Angola, Moçambique e outras colónias portuguesas, numa conferência internacional a realizar no pós-guerra.

A intervenção de Portugal na guerra constituiu um desastre político e militar, económico e social. Foram mobilizados perto de 200 mil soldados, registando-se cerca de 10 mil mortos e muitos milhares de feridos.

A primeira brigada do corpo expedicionário português (CEP) chegou à Flandres em Fevereiro de 1917, comandadas pelo general Gomes da Costa, futuro chefe do golpe de 28 de Maio de 1926; o ministro da Guerra, general Norton de Matos, tinha preparado o CEP no centro de instrução de Tancos, seguindo-se mais dois contingentes que totalizaram 20 mil combatentes. Na madrugada de 9 de abril de 1918, em apenas quatro horas de ofensiva alemã, perderam a vida mais de 7 mil soldados, metade dos que estavam na primeiras linha das trincheiras – a maior catástrofe da história militar portuguesa desde Alcácer-Quibir.

Em África as coisas não correram muito melhor. Os primeiros contingentes que chegaram a Moçambique perderam cerca de metade dos efetivos sem entrar em combate, devido a doenças, o que traduz o grau de impreparação e falhas logísticas. Com um total de efetivos perto dos 20 mil homens registou sucessivos fracassos na tentativa de passar o Rovuma, face a apenas 4000 soldados alemães no Tanganica. E, no final da guerra, intensificaram-se as revoltas contra o domínio português, fruto dos maus tratos às populações. Algo de semelhante se registou em Angola, com o desastre de Naulila, logo em dezembro de 1914.

As derrotas militares, a carestia de vida e a miséria da grande maioria da população reforçaram o desejo de paz, habilmente manipulado por Sidónio Pais – um general monárquico e germanófilo – para dar um golpe palaciano, em dezembro de 1917. Este golpe contou com uma neutralidade benevolente do movimento operário, sob a direção anarco-sindicalista (1) da UON – União Operária Nacional, duramente reprimido pelos governos republicanos. Em Abril sobreveio a tragédia de La Lys e situação social agravava-se, o que desencadeou várias greves gerais, a última das quais foi causa indireta do atentado na estação do Rossio que vitimou o "presidente-rei", em Dezembro de 1918.

Mas o apoio social da República estava ferido de morte: Afonso Costa, o seu maior símbolo, fez por merecer o cognome de "racha-sindicalistas" e a participação na guerra foi a machadada final. O consulado sidonista durou apenas um ano, mas foi a antecâmara do golpe de 28 de Maio de 1926. A aversão à guerra marcou de tal forma a consciência colectiva do povo português que até Salazar, "o manholas", o manipulou na II Guerra Mundial, com a pseudoneutralidade alinhada com o nazi-fascismo. Por ironia da História, uma nova guerra (colonial) ditaria a queda da ditadura fascista, em 25 de Abril de 1974.

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(1) - O Partido Socialista Português, membro da II Internacional, tinha uma presença quase irrelevante no movimento operário. A reboque dos políticos republicanos, durante a guerra seguiu a onda patrioteira.

Alberto Matos

A Comuna 32 (II semestre, outubro 2014) pp. 4-8

ilustração: Maria João Barbosa/LunaKirscheIllustration

 

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