25 de Abril aos Jovens Versão para impressão
Quarta, 14 Maio 2014

25 de Abril aos jovens - ilustração de Maria João BarbosaO Portugal de Abril foi motivo de inspiração de artistas plásticos, de músicos e de poetas portugueses e estrangeiros e, foi também Abril que quebrou o ostracismo internacional a que a política de Salazar e Caetano tinha conduzido o nosso país.

 

testemunho de Fátima Barata

 

Enquanto membro de uma geração que, aquando do 25 de Abril, andava à volta dos 20 anos, tendo eu vivido e participado com bastante intensidade aqueles tempos, devo dizer, que fiquei muito satisfeita com o convite para transmitir aos jovens o meu testemunho. Fiquei satisfeita, fiquei empolgada, mas ao mesmo tempo indecisa sobre o que dizer e como o dizer a vocês jovens, que nasceram vários anos depois da data que aqui estamos a evocar e que para muitos é apenas mais uma data ou pouco mais e que por isso (mas não apenas por isso) muitas vezes não entendem porque constitui o 25 de Abril  um marco fundamental na história de Portugal e na vida individual e colectiva de todos nós, portugueses.

Não vou fazer nenhum discurso político ou análise; vou sim falar-vos de situações, de emoções e, do "espírito do 25 de Abril" que durante vários meses se viveu neste país e que envolveu muita gente e a mim particularmente.

Concluí que não é possível falar do 25 de Abril sem falar do 24! Só conhecendo ou compreendendo como era a vida antes da chamada "revolução dos capitães de Abril" se pode entender o empenho, de então, de milhares e milhares de portugueses e o entusiasmo com que muitos falam, ainda, desses tempos.

Fazendo então uma viagem a esse passado, eu, Fátima Barata, era uma jovem estudante que, de um modo ligeiro, se opunha e contestava o ensino em que estava integrada que era um ensino autoritário, que fazia apelo apenas à memorização, que estimulava a falta de sentido crítico e a passividade e que, às contestações dos estudantes respondia com a repressão policial.

Dou-vos um pequeno exemplo, vivido no meu 1º ano no então chamado Instituto Comercial de Lisboa, e que hoje é o chamado ISCAL: certa vez, quando os alunos se reuniam em RGA num simples processo de contestação aos métodos de um professor, as instalações foram simplesmente invadidas pela polícia de choque e a RGA foi desbaratada a cassetête.

Foi a primeira vez que andei fugindo da violência, procurando uma porta aberta que me escondesse e protegesse.

Posso dizer-vos também que, nessa altura, estava o meu irmão na tropa (de que ele não gostava...), mais exactamente no Hospital Militar.

Vocês podem imaginar o que seria visto num hospital que recebia feridos graves da guerra colonial... e vocês imaginem-se um jovem de 20 anos e nesse ambiente...

Quando ele pensava que o pesadelo estava quase a acabar e vir embora, foi mandado para Luanda onde viveu os horrores do início da guerra civil em Angola....

Posso dizer-vos ainda que, o meu irmão ainda hoje se recusa a dizer uma palavra que seja sobre o que viu e viveu naquele tempo...

E posso falar-vos ainda de uns senhores de óculos escuros que adoravam estar nos cafés frequentados por estudantes, que adoravam espreitar para saber que livros nós estávamos a ler, que adoravam ouvir as conversas que se faziam nas mesas ao lado. Passavam manhãs inteiras, tardes inteiras, noites inteiras, sentados à mesa, com a chávena do café vazia à frente, violando o privado dos que os rodeavam, buscando e perseguindo o proíbido.

E, dizer-vos que os beijos em público estavam sujeitos a multa...

E, dizer-vos que os gestos de ternura dos namorados poderiam ser motivo de expulsão de locais públicos...

E, a segregação social e de educação entre meninos e meninas, entre rapazes e raparigas, entre homens e mulheres....??

Quero falar-vos do que vivi directamente, por isso não falo do analfabetismo, dos direitos que as mulheres não tinham, dos quotidianos duros e repressivos nos locais de trabalho, das eleições selectivas e viciadas, da perseguição aos opositores, do isolamento e atraso cultural ou económico ou de tantas outras razões que constituíram a razão principal pela qual tantos milhares de pessoas deste país aderiram ao 25 de Abril com o tal brilhosinho nos olhos.

Era a possibilidade de respirar profundamente, era a possibilidade de dar côr ao cinzentismo que até então dominava. Era a possibilidade de, ao sofrimento contido, à dureza da vida, à raiva calada, pôr um fim.

A partir do 25 de Abril de 1974 e sobretudo no cerca de ano e meio que se seguiu, viveu-se uma vida nova, um novo estado de espírito colectivo.

As pessoas acreditaram que poderiam mudar as suas vidas e lutaram por isso!

As pessoas quiseram deixar de viver em barracas e muitas conseguiram!

Quiseram creches para os filhos e criaram-nas!

Quiseram melhores condições de trabalho e muitas vezes conseguiram-nas!

Quiseram pôr fim à subalternização da mulher na sociedade e conseguiram-no, pelo menos na lei!

Quiseram contrariar o obscurantismo em que viviam e conseguiram-no um pouco!

Quiseram viver com dignidade e melhoraram a sua condição!

E tudo isto, com grande determinação e generosidade, muitas vezes debaixo de chuva ou de sol escaldante, roubando horas ao sono, com muito sacrifício mas, também, com muito empenho e confiança.

Foi o tempo em que provavelmente mais se leu em Portugal, mais se participou em iniciativas culturais, mais se confratenizou, mais as pessoas se dispuseram a abdicar do seu "eu" e foram mais fraternas e solidárias.

Portugal voltou a ser o lar de centenas de exilados - políticos, intelectuais da ciência e da cultura ou vulgares cidadãos trabalhadores.

O Portugal de Abril foi motivo de inspiração de artistas plásticos, de músicos e de poetas portugueses e estrangeiros e, foi também Abril que quebrou o ostracismo internacional a que a política de Salazar e Caetano tinha conduzido o nosso país.

O meu testemunho pretende ser, tão somente, um retrato do passado feito por uma jovem desperta para as coisas boas e más da vida que acredita, hoje como então, que a participação social é um elemento fundamental da cidadania de corpo inteiro.

Espero não ter sido enfadonha...

Termino com as palavras que Chico Buarque de Holanda (talvez o maior da Música Popular Brasileira) cantou:

Sei que estás em festa, pá

Fico contente

Enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá

Com a tua gente

E colher pessoalmente

Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar

Tanto mar, tanto mar

Sei também quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá

Cá estou doente

Manda urgentemente

Algum cheirinho de alecrim

Fátima Barata- A Comuna nr. 31 (Maio 2014) 37-39.

edição Especial 40 Anos do 25 de Abril.

ilustração: Maria João Barbosa/LunaKirscheIllustration para A Comuna 

 

A Comuna 33 e 34

A Comuna 34 capa

A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil"EditorialISSUUPDF

 capa A Comuna 33 Feminismo em Acao

A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação"ISSUU | PDF | Revistas anteriores

 

Karl Marx

 

 
 

Pesquisa


Newsletter A Comuna

cabeca_noticias

RSS Esquerda.NET