Nascimento e evolução da Lisnave Versão para impressão
Sexta, 10 Janeiro 2014

lisnave1982Os trabalhadores, ao longo destes 70 anos, conseguiram sempre formas de dignificar a sua passagem pelos estaleiros. Conquistaram espaço, voz, reivindicaram direitos e salários, disseram não à repressão, quando não se podia falar. Aprenderam e ensinaram, descobrindo, criando e melhorando métodos e formas de trabalho.

Artigo de Fernando Figueira

 

DA CUF À LISNAVE

Situado na margem norte do rio Tejo, o Estaleiro Naval da Rocha ainda é propriedade da Administração do Porto de Lisboa (APL).  A sua actividade iniciou-se em 1899, após a conclusão de duas docas secas e de um plano inclinado, para a reparação e construção de pequenas embarcações e batelões.

A partir de 1937, o Estaleiro é arrendado à CUF mantendo-se até 1961, altura em que se dá a transferência da concessão para a Navalis, empresa especializada em que a CUF se mantém na Administração; em 1963, com a criação da Lisnave, passa esta a arrendar o Estaleiro, situação que perdurou até 1998.

A adjudicação do Estaleiro da Rocha à CUF em 1937, foi um dos eixos de uma estratégia de crescimento deste grupo pois, além de garantir o controle do maior estaleiro nacional (à época), possibilitou um apoio mais eficaz à frota da Sociedade Geral, abrindo assim um espaço logistico de suporte à frota mercante, fundamental para o abastecimento de matérias primas do nascente grupo CUF.

___Construções de navios no estaleiro da Rocha – 1937/1966___

1937/41   1942/46   1947/51   1952/56   1957/61   1962/66

18              10           17            26             33            19

A 2ª GUERRA MUNDIAL E AS LUTAS OPERÁRIAS

As tentativas governamentais, nos anos 1930/40, de reequipamento naval quer militar quer da Marinha Mercante, esbarravam devido à 2ª guerra, nas carências de matérias primas e equipamentos industriais de que a construção e reparação navais tanto dependiam.

O Estaleiro da Rocha era o único com capacidade e condições para reparar grandes embarcações a nível nacional. O aumento da capacidade produtiva, especialmente das secções de Fundição, Caldeiraria e Mecânica, era ainda utilizado para executar outros tipos de trabalhos, como o fabrico de vagonetas para as minas da Lousã, equipamentos vários para a Companhia de Cimentos, Instituto Pasteur, entre outros.

A 2ª Guerra Mundial e a conjuntura daí resultante trazem dados novos. A inflacção, assim como toda a política de contenção salarial do Governo de Salazar, provocaram uma larga vaga de agitação social.

A reorganização do velho PCP em 1940 é fundamental para o movimento reivindicativo que se estende a todo o País. Em 1939 e 42, várias são as exigências e lutas no Estaleiro, mas é em Julho/Agosto de 1943 que estala o maior movimento grevista da altura, envolvendo mais de 50 mil operários com o fecho de quase todas as fábricas de Lisboa e Margem Sul, com operários e suas famílias a desfilarem em enormes manifestações e marchas da fome.

O Governo tomou medidas de excepção, com o próprio Ministério da Guerra a assumir a repressão, encerrando e ocupando militarmente as fábricas.

De 26 a 29 de Agosto de 1943 alastra da Caldeiraria e da Fundição a todo o estaleiro uma greve de braços caídos, com permanência no local de trabalho. No Estaleiro apresentaram-se 1625 operários, sendo presos a 28  de Julho 851 que foram retirados em levas durante toda a tarde para as cavalariças da GNR e para praças de touros. Perante a situação o Estaleiro paralizou na totalidade.

A 29 de Julho só havia 418 homens (dum efectivo de 1900), no mês seguinte a Gerência para tentar manter a produção e cumprir prazos abriu inscrições, mas a maioria dos candidatos reprovou nos testes. Muitos dos grevistas reocuparam os seus postos de trabalho, mas vários continuaram presos; foram deportados para África e para o Tarrafal e outros foram mortos.

Ficaram muitas sementes de uma tradição reivindicativa, que ciclicamente emergia principalmente no Estaleiro mas também por todo o grupo CUF.

Após a guerra, os trabalhadores obtiveram alguns aumentos salariais e reforço na ração do pão. O regime esmagava brutalmente os focos de luta, mas o relativo sucesso das lutas, a experiência adquirida e as más condiçõesde vida e de trabalho alimentavam a agitação.

O NASCIMENTO DO GRANDE ESTALEIRO

Nas décadas de 60 e 70 do século passado, o Estaleiro continua a sua actividade e vai sucessivamente abandonando a construção, são desenvolvidos e aplicados métodos e processos de de modernização e organização de trabalho, mas é com a Margueira que se dá um grande salto qualitativo principalmente nos equipamentos e ferramentas.

As necessidades de expansão da CUF aliam-se aos Planos de Fomento do governo e apontam para a criação de um grande estaleiro na bacia do Tejo.

Após vários estudos, propostas e negociações, o Dec. Lei 44.708, publicado a 20 Nov. 1962, concede à Lisnave licença para construção e exploração de um estaleiro naval. Alguns dos seus artigos foram fundamentais para o esquema de encerramento deste estaleiro e transferência da actividade para Setúbal 40 anos depois, como se pode ver mais à frente:

·        Os locais vendidos à Lisnave reverterão para o Estado, se aquela deixar a actividade; se a mantiver por mais de 10 anos, o Estado indemnizará a Lisnave por todas as obras portuárias fixas, edifícios e equipamentos, com valores calculados à data da reversão. (Este foi um dos argumentos fortes do grupo Mello para justificar o fecho da Margueira e negociar um passivo que já era superior a 70 milhões de contos em 1993).

·        Declara isentos de taxas de importação por um periodo de 14 anos todos os equipamentos e materiais importados, ficando ainda dispensados do pagamento de taxas de porto os navios que viessem reparar ao estaleiro. (Face ás dimensões do negócio esta declaração implicava verbas e benefícios inimagináveis).

O consórcio internacional que preparou o projecto da Lisnave, envolvia 49% de capitais Portugueses, 49% de Suecos e Holandeses e 2% coordenados pela Banca; o capital social era de 50.000 contos. Em Janeiro de 1965 o capital social já era de 500.000 contos, detendo os accionistas portugueses 46,88% (sendo 38,19% da CUF e família Mello), 39,44% dos estrangeiros e 13,68% de acções ao portador.

Com várias alterações, o novo estaleiro é construido, experimentado e inaugurado oficialmente a 23 de Julho de 1967.

A " GRANDE" LISNAVE E A SETENAVE

No mesmo mês da inauguração do estaleiro da Margueira, encerra o Canal Suez (161 km que ligam o Mar Vermelho ao Mediterrâneo), obrigando toda a actividade marítima, especialmente o transporte de petróleo, a dar a volta a África (Rota do Cabo). Este acontecimento elimina a concorrência dos estaleiros do Mediterrâneo e as encomendas crescem, aumentando o volume de trabalho no Estaleiro. Também provocou alterações nos tipos de navios que passaram a ter maiores dimensões e capacidade de transporte.

Em 1969 a Lisnave repara 21% dos petroleiros acima das 70.000 toneladas existentes a nível mundial.

Encomendas navios          1966      1967     1968     1969

Milhões de toneladas          31,1       33,4      43,5      50,3

Entre 1963 e 1971, o comércio mundial cresce 89%, a entrega de navios novos 203% e a carteira de encomendas dos estaleiros 483%.

É neste contexto que evolui o projecto de construir o Estaleiro da Setenave, virado para a construção e podendo fazer também reparação.

Mais uma vez com apoio do Governo, a 6 de Abril de 1972, começam as obras de dragagens. A construção da Setevave acelera, animada pelo crescimento da frota mundial em 9,8% e com uma carteira de encomendas até 1977.

Mais tarde, já em 1973/74, só os serviços da Lisnave representavam mais de 6,5% do total das exportações do País.

Para ultrapassar as dificuldades de recrutamento de pessoal, é feita nos 2 estaleiros da Lisnave uma forte aposta na Formação Profissional, os salários são superiores, recrutam-se trabalhadores vindos de outras empresas e de zonas rurais, convidam-se emigrantes e é feita larga publicidade ao recrutamento nas Escolas Industriais e no antigo ISEL.

EVOLUÇÃO DOS TRABALHADORES EFECTIVOS DA ROCHA E MARGUEIRA

1937      43      52      58      60      62      65       67

Rocha   961    2400  2000  2680  2180   2285  3290  2718

1969     70      71      72       73      74      75      77     79      81      82

Rocha   1570  1385  1370  1258  1205  1228  1128  1444  1218    995    895

Margueira  2952  3563  5333  5849  6510  6972  7335  8319  7297  6802  6241

A rápida admissão de centenas de trabalhadores, vem rejuvenescer o efectivo e trazer novos valores, experiências e culturas a esta numerosa concentração proletária.

A GREVE DE 1969

A estruturação da empresa com uma forte organização sectorial e coordenada, a penosidade do trabalho, a repressão e a prepotência e a elevada concentração operária, vieram engrossar condições para um novo fôlego no movimento reivindicativo que aspirava por aumentos salariais, direitos e justiça social.

A Greve de 69, a 12 e 13 de Novembro, alastra por navios e oficinas na Margueira e na Rocha, com uma sucessiva paralização do trabalho.

A Administração reage como 20 anos antes, a polícia de choque carrega contra os operários e no dia 13 as portarias, controladas pela polícia, impedem a entrada dos trabalhadores que são mandados para casa e readmitidos um a um, com despedimento dos considerados agitadores e organizadores, o que na maioria dos casos foi um ajuste de contas e saneamento dos que não se calavam ou não eram do agrado das chefias.

A Administração, procurando evitar a repetição da greve, aplica um aumento salarial em Janeiro de 1970, melhora a informação interna, publica uma atractiva revista da empresa, inaugura a escola de formação, promove uma chamada "Comissão Interna"com representantes de vários sectores, incentiva os trabalhadores estudantes.

Após o 25 de Abril uma das reivindicações conseguida foi a reintegração dos despedidos na Greve de 1969.

O 25 DE ABRIL E A LISNAVE

A acção militar no dia 25 de Abril de 1974, apanhou os trabalhadores desejosos de mudarem a sua vida e a sociedade e, pouco tempo depois, as reivindicações económicas, sociais e políticas surgem por todos os sectores do estaleiro. São discutidas em Assembleias e fundidas num Caderno Reivindicativo dos Trabalhadores da Lisnave que é entregue à Administração a 14 de Maio. Em simultâneo é também formada a CT, num processo de representantes sectoriais a partir da base.  O Estaleiro entra em Greve em luta pelo Caderno Reivindicativo.

O tempo que se seguiu foi um periodo de medição e acerto de forças: Foi a  mobilização e discussão colectiva, a vontade de acabar com a repressão, que se traduzia na identificação, denúncia e saneamento de pides, bufos e também de Administradores e gestores comprometidos com a corrupção e a exploração.

A manifestação de 12 Setembro de 1974 realizou-se, com a neutralização de uma força militar enviada pelo Governo Provisório, que pretendia evitar que os trabalhadores saíssem à rua.  Numa posição de força, milhares de operários marcharam sobre Lisboa com os seus fatos de trabalho e capacetes, exigindo no Ministério de Trabalho: o saneamento dos fascistas e dos comprometidos com o regime anterior, o fim do lock-out e democracia para quem trabalha.

Esta Manifestação impressionou o povo de Lisboa. Com a sua força e organização, mostrava o poder dos operários, informava a população e denunciava situações concretas, convidava os soldados a aderir e a colocarem-se ao "lado do povo",  assustou a burguesia, os instalados e a Administração da Lisnave.

A Administração dá a imagem de um controle flexível, mas vai acentuando contactos com o novo poder político, procurando influenciar e continuar a ter favores e benefícios, mas a ausência de um Governo forte, faz a família Mello fugir para Londres, de onde passa a gerir os seus negócios e os dólares das reparações da Lisnave.

É nomeado um Administrador Delegado (Álvaro Barreto) com poderes e uma equipa à sua volta, para garantir o funcionamento do Estaleiro e que fala e reune com a CT e com os Sindicatos.

A COMISSÃO DE TRABALHADORES, BARÓMETRO DE MUITAS LUTAS

A Lisnave, foi das primeiras empresas a formar este tipo de organização de base, democrática, mobilizadora em torno de questões de interesse geral, com elevada flexibilidade, factor de unidade, conjugação e potenciação de forças no enfrentamento de classes.

Foi uma das "filhas", do 25 de Abril, querida dos trabalhadores e odiada dos exploradores, consignada na Constituição de 1976, limitada e controlada pelo Dec. Lei 46/79, trucidada pelo fecho de empresas, pela precariedade e pelos contratos a prazo, mas viva, renascendo permanentemente, qual Fénix, ao primeiro sopro de uma nova luta.

Na Lisnave, em Dezembro de 1974, a organização do PCP, em corte com a comissão que dirigiu a luta, promove e consegue através de uma Assembleia Geral de Trabalhadores paralela e com o apoio de sectores das chefias, a constituição de um chamado Conselho Geral dos Trabalhadores (CDT) com 15 elementos, que tem uma direcção centralizada, apenas ouvindo os delegados de base, mas sem qualquer vínculo nem responsabilização perante estes.

A Administração reconheceu e deu apoio de imediato à CDT, pois passava a ter um interlocutor controlável e dentro do sistema.   Depois de forte luta e resistência que provocou a queda da CDT já em 1975 e da reposição da eleição da CT em Assembleia de Delegados eleitos na base a que se chamou Conselho Geral de Trabalhadores (CGT), arrastou-se a luta política, depois de algumas vacilações e ajustes, uma Asembleia Geral de Trabalhadores decide maioritariamente que as eleições para a CT passem a ser anuais e por lista, com a lista vencedora a tomar conta da comissão. Este facto revelou-se um desastre para o futuro, pois partidarizou a participação dos Trabalhadores, destruiu a actuação espontânea de base, fracturou a unidade interna e estimulou a introdução da UGT e o aparecimento de Sindicatos diversos e afastou de uma acção mais directa a nível interno muitas dezenas de homens reconhecidos e considerados nos seus sectores.

1977       1978       1979       1980       1981

Lista apoiada pelo PCP         54,7%     55,1%    55,9%     55,3%     59,7%

"         "         "     PS          23,8%     16,2%    13,3%      22,3%    15,9%

"         "         "  UDP         13,5%      14,8%    17,2%     17,8%     14,3%

"         "         " MRPP          1,5%        2,0%      2,5%      2,7%        --

"         "         " POUS             --           4,9%      0,5%      2,0%      1,1%

"         "         "   PSD              --             --             --            --        7,5%

A participação dos trabalhadores nas votações foi sempre  superior a 70% e só houve representatividade das várias listas após a lei 46/79.

Após o periodo de salários em atraso só em 1991 há condições para uma lista apoiada pela CGTP (pela primeira vez com membros do PCP, UDP e outros) reganhar a CT a uma maioria UGT que a conseguira desde 1986.

Mais tarde, em 1997, em preparação da aplicação do Plano de Reestruturação, ainda com a Lisnave com 3 Estaleiros (Rocha, Margueira e Solisnor), passa a haver apenas uma CT que abrange toda a Lisnave.

DEPOIS DO 25 DE NOVEMBRO

Perante a inércia dos sucessivos Governos em apoiar e financiar a Lisnave, em 1978, o grupo Mello decide mudar de estratégia e envia ao Governo um chamado "Plano de Reviabilização da Lisnave" que apontava,  entre outras, como medidas necessárias:

·        Taxas de bonificação várias e juros baixos.

·        Facilidades para recorrer a empréstimos na Banca estrangeira.

·        Aumento do Capital Social, reduzindo por este meio a representatividade do Estado

·        Reavaliação do activo corpóreo.

·        Redução do efectivo em 10%, com Reformas antecipadas.

·        Limitar a intervenção e participação dos Trabalhadores.

Como estas tentativas de colocar a legislação, o erário público e os favores do Estado a finançiar o capital ainda não são aplicadas com a rapidez desejada pelo o grupo Mello. Numa acção concertada, vários quadros da Lisnave integram os Governos de então e paralelamente verifica-se uma acção de desmembramento da empresa com a separação dos sectores mais rentáveis ( que são tornados independentes ou que passam a estar ao serviço doutras empresas do grupo Mello) o que provoca um longo e acentuado caminho de descapitalização da Lisnave com resultados negativos que se agravam ano após ano.

Este conjunto de medidas, com o argumento da deslocalização do eixo da Industria  Naval da Europa para a Ásia  (Japão,Coreia,etc), pretendia no essencial garantir novas condições e apoios e financiamentos da parte do Estado ( Dumping ) e influenciar com este exemplo a orientação e o tipo de política económica e laboral do País.

Em 1981, a Margueira passa a reparar 20% de todos os navios mistos e petroleiros que serviam a Europa Ocidental, EUA e Canadá.   Na Balança Comercial Portuguesa, a Lisnave capta para o país 150 milhões de dólares (113 milhões em 1979).

Á "sombra" da Lisnave, reergue-se e ramifica-se o grupo Mello, da Império vem para Administrador Delegado o dr. Viegas Dias, o Banco de Portugal faz bonificações das taxas de juro para as empresas industriais de elevado valor acrescentado. Mas tudo isto não satisfaz a voracidade do capital que já começa a ter espaço para disputar os mercados rentáveis e "fáceis" da especulação financeira e imobiliária.

A "grande" Lisnave com as suas dívidas, depois de terem permitido, financiado e servido a reestruturação do novo "império", começa a deixar de ter interesse para o grupo Mello que se reestrutura noutros moldes.

OS SALÁRIOS EM ATRASO

O ano de 1981 foi dos melhores de sempre da Lisnave com lucros muito acima do esperado, só que os 14 anos de benefícios e isenções ( 1967 / 1981 ) oferecidos por Salazar estavam a chegar ao fim.

Em 1982, com o argumento da "crise", a Aministração provoca uma desnecessária  situação de salários em atraso, que se arrastou por vários e dramáticos anos para os trabalhadores e suas famílias com enormes reflexos negativos no comércio local.

Os trabalhadores reagem à situção com luta e exigência de rápida normalização dos salários, mas o grupo Mello agia com propósitos de longo prazo, previu e quis aproveitar-se da justa reacção e luta dos trabalhadores para pressionar decisões do governo favoráveis às suas velhas exigências, como mais uma forma de perpétuar a sua subsidiodependência.

A conjuntura era favorável, tinha havido revisão constitucional (AD/PS), havia pessoas de confiança do grupo Mello no Governo e na AR, a Administração já tinha entregue uma carta ao 1º Ministro (Balsemão) em 1978

com os propósitos do grupo, etc.

Após um ano de salários em atraso, os trabalhadores agudizam a sua luta e em Maio de 1983 entram em Assembleia Geral permanente com piquetes 24 horas por dia situação que se arrastou, num duro "braço de ferro", durante sete semanas.

No dia 13 de Julho de 1983, pelas 5 horas da madrugada a polícia de choque invade o Estaleiro da Margueira, prende os trabalhadores do piquete e isola e ocupa o perímetro do Estaleiro por terra e mar de Cacilhas à Cova da Piedade, com um grande aparato militar, com o pretexto de tirar alguns navios docados.

Foi grande o protesto quer dos trabalhadores impedidos de chegar ao Estaleiro, quer das suas organizações a nível local e nacional e mesmo da própria população.

Os trabalhadores saturados e sem verem soluções que restabeleçam o pagamento dos seus salários, recuam organizados, mas não conseguem evitar alguns meses depois, o despedimento colectivo de mais de 200 trabalhadores ( dos quais mais de 30 tinham pertencido aos ORT's) num claro saneamento político. Também as centenas de rescisões de contratos, conseguidas com a chantagem da fome e de um futuro pouco claro, se vêm juntar a uma acentuada diminuição do pessoal efectivo do Estaleiro.

A Lisnave é classificada em situação económica díficil, regalias e prémios de gravosidade de trabalho conseguidas em anos de reivindicações são congelados verificando-se também uma elevada perda dos salários reais.

Os argumentos da grave crise, da concorrência internacional e da falta de navios para reparar tão apregoada pela Administração, esfumam-se e o estaleiro enche-se de navios.

A UGT ganha a maioria da CT durante 5 anos, à sombra da ilusão do "talvez assim as coisas melhorem", os sindicatos e seus representantes reorganizam-se e os sindicalistas da UDP têm um papel fundamental na defesa de cadernos reivindicativos únicos, negociados por um grupo amplo, diversificado e representativo, na progressiva recuperação de direitos, conquistas e no retomar da confiança da intervenção dos trabalhadores na luta organizados nas suas estruturas.

O PLANO DE REESTRUTURAÇÃO DA INDÚSTRIA NAVAL

Após longos estudos, é apresentado em 1993 pelo grupo Mello um plano complexo de grande envergadura que veio a ficar conhecido como "Plano de Reestruturação da Indústria Naval", que envolveu a Lisnave, a Setenave (que se passara a chamar Solisnor), 4 ministérios, centrais sindicais, os trabalhadores do Estaleiro e empresas associadas, um conjunto de bancos credores, a UE (7ª Directiva), entre outros.

As principais ações práticas desse plano passam por:

·        A Lisnave passa a chamar-se Gestnave, que assume as dívidas e os trabalhadores não escolhidos pela nova "Lisnave"e fica da responsabilidade do Estado que nomeia uma Administração com gestores públicos;

·        É criada uma nova "Lisnave", para aproveitar o nome comercial, com as contas limpas e que assume a produção, com um número mais reduzido de efectivos;

·        É desactivado o estaleiro da Margueira (Cacilhas) e abandonada a exploração na Rocha (Lisboa) com a devolução deste estaleiro à APL, concentrando a actividade na antiga "Setenave" (Mitrena), que passa a ser o novo estaleiro Lisnave;

·        São construidas 3 novas docas no estaleiro da Mitrena com dinheiros públicos;

·        O Estado assume todas as dívidas e o espaço e toda a área geográfica da Margueira é oferecido aos bancos credores como compensação das dívidas;

·        É garantido por um período de 10 anos (até 2007), a passagem à pré-reforma dos trabalhadores que atinjam os 55 anos e o seu acesso à reforma;

·        A nova Lisnave, devia manter um efectivo de 1339 trabalhadores e promover o rejuvenescimento do efectivo do estaleiro.

Para garantir os compromissos e o funcionamento da Gestenave é nomeada pelo governo uma Administração que monta e mantém uma organização e estrutura paralelas à Lisnave funcionando dentro dos estaleiros.

A Gestnave funciona como empreiteiro preferencial, num compromisso "Take or pay" em que se compromete a fornecer à nova Lisnave 1.400.000 horas de trabalho/ano, a troco de um valor horário reduzidíssimo, em que a mais valia da Lisnave é de 1 para 5 (paga 1 à Gestnave e recebe pelo trabalho executado 5, dos armadores dos navios), tudo em nome de uma boa recuperação económica...( para sermos claros, em nome duma forma habilidosa do financiamento pelo Estado aos grupos económicos).

A APLICAÇÃO DO PLANO DE REESTRUTURAÇÃO

Da apresentação deste plano ( 1993 ) até ao início da sua aplicação (Jan. 1997), passando pelo seu encerramento ( Dez. 2007 ), aconteceram um longo e complexo conjunto de discussões, envolvências e pressões económicas, políticas e sociais:

-Foi sendo "vendida", pelo grupo Mello, a imagem de que a situação e organização da empresa, na altura, só levava ao agravar da enorme dívida, pois era insustentável manter o volume de postos de trabalho com a legislação laboral da época e muito menos renovar o efectivo com os direitos que os velhos trabalhadores possuiam.

-O governo que assumiu as dívidas e os trabalhadores considerados excedentários pelo Mello, foi obrigado a criar um Fundo de Pensões de forma a garantir as verbas necessárias para pagar os salários da Gestnave, as pré reformas dos trabalhadores que iam saindo e outros compromissos.

-Hoje é fácil concluir que a regularização económica da Lisnave foi uma decisão política que se traduziu no finananciamento do estado a um grupo privado que desviou dinheiros e empresas para reerguer o seu grupo económico, foram-lhe perdoadas as dívidas tudo num claro prejuízo do erário público.

-Já com este plano em aplicação, no ano 2000, o grupo Mello, com as "costas" oficialmente limpas de uma dívida de 70 milhões de contos, sai dos compromissos assumidos e vende simbolicamente o capital da Lisnave a dois quadros ( por 1 dólar), que passam a ser os patrões da empresa.

-O governo assume encerrar a Gestnave em 2008, depois de recusar e/ou de não conseguir negociar várias propostas (feitas pelos trabalhadores) de solução e integração na Lisnave, provocando rescisões e despedindo os cerca de 200 trabalhadores que não atingiram os 55 anos até Dezembro de 2007, quando terminou o chamado Plano de Reestruturação.

Entretanto a actual  Lisnave continua a fazer exigências ao Governo, limita-se a fazer a actividade comercial e a gestão corrente, tem hoje pouco mais de 100 trabalhadores efectivos, disputa o mercado internacional e continua a ser um dos estaleiros de reparação naval com maior ocupação de navios e facturação do Mundo, executando o trabalho com empreiteiros, em boa parte vindos de vários países, acumulando lucros, continuando a não aceitar compromissos assumidos e deixando perder-se toda uma rica técnica e experiência de dezenas de anos.

ALGUMAS CONCLUSÕES

O regime fascista de Salazar dava uma protecção descarada ao capital monopolista.  No Estaleiro, desde a concessão em 1937, às isenções de taxas e impostos quando da formação da Margueira em 1967, são inúmeros os exemplos.

Após o 25 de Abril, o capital ajustou-se rapidamente ao novo regime, e não perdeu tempo na interferência e na disputa política e ideológica, para influenciar o rumo do País, influenciar as organizações patronais e tirar dividendos económicos da situação.

O fim do periodo da isenção de impostos, (14 anos de 1967 a 81), coincidiu com a chantagem dos salários em atraso, numa das mais abjectas e selvagens atitudes de exploração dos operários e suas famílias, servindo-se dela para pressionar o Governo da altura a ceder a novos favores e financiamentos.

A subsídio dependência é um dos traços que atravessam a história da Lisnave.

Os trabalhadores, ao longo destes 70 anos, conseguiram sempre formas de dignificar a sua passagem pelos estaleiros. Conquistaram espaço, voz, reivindicaram direitos e salários, disseram não à repressão, quando não se podia falar. Aprenderam e ensinaram, descobrindo, criando e melhorando métodos e formas de trabalho. Das suas lutas e dos seus Cadernos Reivindicativos saíram quase todas as matérias consignadas ainda hoje nos CCTs e na legislação laboral. Criaram e adaptaram sucessivamente novas formas de organização para lutar pelos seus interesses e direitos.

O peso e as ilusões reformistas e social democratas (a economia ao serviço dos trabalhadores, as conquistas irreversíveis, etc), os 48 anos de fascismo, a força da chantagem da fome e a influência do patronato, limitaram a sua intervenção, mas os trabalhadores nunca viraram a cara, enfrentaram o capital, com o seu saber e a sua luta e continuam dispostos a fazê-lo.

A história continua...

 

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