O clã siciliano Versão para impressão
Quarta, 11 Dezembro 2013

godfather"O bolchevismo está a bater-nos à porta, não nos podemos dar ao luxo de o deixar entrar... Devemos manter a América inteira, segura e intacta. Devemos manter o trabalhador afastado da literatura vermelha e das artimanhas vermelhas, devemos certificar-nos de que a sua mente permanece saudável "- Al Capone.

Artigo de Matthijs Krul

 

Fundada em hostilidade contra camponeses e trabalhadores, a máfia sempre foi uma organização reacionária - intermediários tanto dos proprietários da era feudal como dos oligarcas do capitalismo de hoje.

"O bolchevismo está a bater-nos à porta, não nos podemos dar ao luxo de o deixar entrar... Devemos manter a América inteira, segura e intacta. Devemos manter o trabalhador afastado da literatura vermelha e das artimanhas vermelhas, devemos certificar-nos de que a sua mente permanece saudável "- Al Capone.

Retratados como lutadores imperfeitos e gananciosos, mas lutadores astuciosos e inventivos contra o establishment, os mafiosos sempre foram os anti-heróis ideais da cultura pop americana. Em séries de TV como "Os Sopranos" e em filmes como "O Padrinho", vemo-los operar, ainda que, sob um código de honra antigo que parece separá-los do frio amoralidade da classe dominante capitalista moderna. Naturalmente, o facto de a vida do chefe da máfia dar vasta oportunidade aos cineastas de incorporar altas doses de violência e sexo nos seus filmes também é uma parte importante do negócio.

Por princípio, não parece haver nada de errado com isso. Afinal de contas, os mafiosos em questão raramente são retratados como particularmente bons ou simpáticos, e anti-heróis são um arquétipo comum e apreciado em argumentos. Além disso, por boas razões, poucas pessoas se identificam fortemente com o FBI ou outras organizações policiais dedicadas à manutenção da lei e da ordem contra a qual a máfia supostamente se revolta, em vão, para que este último possa aparecer tanto como anti-herói e como defensor dos oprimidos, uma combinação sem dúvida irresistível.

No entanto, parece-me que, especialmente na esquerda, a política deste género cinematográfico não é suficientemente examinada. Já muito foi escrito sobre as noções de masculinidade e agressividade exterior. Por exemplo, a série "Os Sopranos" joga explicitamente com o tema da fragilidade da masculinidade e com o quão absurdamente longe os membros da máfia estão dispostos a ir para mantê-la. Do mesmo modo, muito tem sido escrito sobre a natureza do mafioso como um self-made man, como um alpinista social, e da dimensão do mito do miserável-tornado-rico inerente à carreira criminal. Mas isso mantém o foco sobre o mafioso enquanto indivíduo.

Numa interpretação diferente, o famoso ensaio de Fredric Jameson sobre "O Padrinho", no seu artigo "Reificação e Utopia" centra-se na máfia como uma metáfora para o poder essencialmente criminoso e predominantemente parasitário do próprio capitalismo. Mas também esta interpretação ignora as origens históricas e económicas do mafioso-herói. Para Jameson, o protagonista da máfia é apenas o lado obscuro do capitalismo que joga contra a fantasia do Partido da Ordem, a possibilidade de uma restauração dentro do capitalismo que nos libertaria das suas forças negativas e destrutivas e restauraria um sentimento de Gemeinschaft pré-capitalista. O filme de máfia é para ele, portanto, um exercício de julgamento moral sobre o lado "ilegítimo" do capitalismo, ignorando que o capitalismo é sempre criminoso.

Mas se nos concentrarmos na função histórica e económica da máfia enquanto instituição, as implicações políticas são diferentes. Nesse caso, a aceitação aparentemente evidente do mafioso como um anti-herói deve ser vista por qualquer política radical numa luz muito mais negativa que aquela que Jameson e outras interpretações psicológicas sugerem. Pois o que está em jogo é mais do que a mera ambiguidade perante o capitalismo como um todo. A máfia como protagonista anti-herói é em si um instrumento politicamente reacionário.

Poucas pessoas parecem muito conscientes das origens da máfia para lá de uma conceção sobre "terem vindo de Itália" como um tipo peculiar de crime organizado. No entanto, a máfia sempre foi mais do que um simples gang, ou mesmo uma confederação de gangs. Uma organização como esta não surge naturalmente - nem as suas hierarquias rígidas, códigos de honra, ou estrutura tipo clã. Não podemos naturalizar este fenómeno, devemos antes examiná-lo historicamente. O que descobrimos, então, é que as origens da máfia remontam à luta entre os proprietários de terras, muitas vezes proprietários ausentes, e os camponeses do Mezzogiorno.

Desde a Alta Idade Média, após o estabelecimento da servidão no reino da Sicília e a sua manutenção sob o governo de Aragão, os interesses dos latifundiários ausentes foram protegidos durante os levantamentos periódicos de rebeliões camponesas ou de invasões estrangeiras (por exemplo por estados muçulmanos do Norte de Africa) através de grupos organizados de guardiões de seus feudos.Esta é a origem da máfia tradicional: representantes e guardiões dos interesses do feudo, dos grandes proprietários, desde o período da escravidão até ao séc. XIX.

Isso também explica a hostilidade da máfia, que se mantém até os dias de hoje, para com as organizações políticas e sociais das populações rurais pobres na Itália e para com a esquerda política (o Partido Comunista Italiano) e os seus sindicalistas, cujos membros muitas vezes tentaram assassinar. No entanto, é justamente objetar-se que não devemos simplesmente projetar as origens feudais sobre a atividade da máfia do séc. XXI. No decorrer do séc. XIX, o sul da Itália submeteu-se ao capitalismo, o que veio alterar a estrutura das suas relações sociais e, com isso, a própria máfia. Como Salvatore Lupo descreve na sua "História da Máfia", o feudalismo decaiu com a fragmentação da propriedade latifundiária, e a urbanização juntamente com a exportação baseada na agricultura e na mineração tornaram tendências economicamente dominantes na Sicília e noutros lugares.

Isso significou uma mudança na raison d'être da máfia. Parcialmente, com as várias rodadas de redistribuição de terras no sul da Itália, a máfia interpôs-se eficazmente entre os grandes proprietários de terras e os camponeses, controlando o processo de distribuição para a sua própria vantagem. Como Lupo escreve: "[a máfia] era quem organizava as cooperativas e ganhou grande parte de sua base de poder servindo como intermediários na transferência de terras dos grandes proprietários para os camponeses e, portanto, tomando firmemente as rédeas dos movimentos coletivos[1]  precisamente na anos do pós-guerra que se seguiram à Primeira Guerra Mundial e à Segunda Guerra Mundial ".

Da mesma forma, com o aumento da orientação para a exportação na agricultura, por exemplo de citrinos, e com o desenvolvimento dos mercados urbanos ligados ao crescente mercado mundial da era capitalista, foi justamente nos interstícios entre a produção rural e o marketing urbano que a máfia encontrou sua presença mais forte. Em Palermo, Lupo identifica a sua base de operações como sendo o terreno suburbano e rural pertencente à cidade propriamente dita:

Em particular, naquele que no século XIX foi chamado de agro palermitano, ou a zona campestre de Palermo, a meio caminho entre a cidade e o campo, os grupos da máfia estabeleceram um sistema de controlo sobre o território partindo da densa rede de guardianie (custódias). A máfia acabou por assumir o controlo tanto dos negócios legítimo como dos ilícitos, roubo de gado, tráfico e contrabando, e a mediação comercial inicial comercial de citrinos e outros produtos da agricultura rica da região. Numa época mais recente, a mesma região provou ser o mercado mais ou menos natural para a expansão do mercado imobiliário e para a especulação nesse campo - locais e bases de poder antigos encontrando novas oportunidades de lucro. A entrada da máfia numa rede migratória transoceânica e seu envolvimento com o comércio de longa distância, tal como o negócio dos citrinos, apenas lançou as bases em termos de mentalidades e capacidades bem adequadas para o contrabando de tabaco e estupefacientes.

É portanto importante, como sempre acontece com tais fenómenos, não nos limitarmos a atribuir a persistência ou a natureza da máfia a ideias pitorescas e românticas da herdadas da época feudal. O seu papel absolutamente reacionário no aterrorizar dos camponeses do Mezzogiorno e na ação[2]  como guardiani dos latifundiários é bastante claro. Mas, na era moderna, as relações capitalistas não levaram à sua erosão, tendo-a antes fortalecido.

O papel do negócio das drogas e outras atividades[3]  diretamente[4]  ligadas ao mercado mundial, e as suas operações ma especulação de terrenos e moradias e em esquemas de proteção[5]  são exemplos de como o papel tradicional da máfia como intermediária assumiu novas formas no período capitalista.Isso não é diferente em Nova Iorque e em Palermo. Com o desaparecimento lento da classe dirigente agrícola, a máfia tornou-se intermediária da nova ordem dominante - intermediários onde quer que se pudesse fazer dinheiro, lícita ou ilicitamente, sempre interpondo-se entre os produtores e a realização do valor dos bens.

Noutras palavras, agem agora como intermediários em nome da classe dominante, não enquanto fenómeno sociológico, mas pela força motriz do capitalismo num sentido mais abstrato[6] , intermediários em nome do capital em geral. Isso esclarece por um lado a sua mistura de, por um lado, uma estrutura tipo clã com um foco fortemente empreendedor, e por outro lado a ambiguidade inerente aos tão alardeadas códigos de honra da máfia, a omertà. Como Lupo descreve, e os filmes de máfia invariavelmente retratam com grande seriedade, a máfia gosta sempre de se ver como vinculada por códigos de honra antigos que a obrigam a apoiar o fraco e atacar o forte. Regra geral, veem-se[7]  como bons católicos tradicionais e são bastante insistentes em fazer valer os seus princípios religiosos, incluindo a sua homofobia inerente e atitudes patriarcais.

Mas é impossível compreender por que motivo tanto criadores como fans dos filmes de máfia dão crédito a este retrato. Num exemplo clássico da "invenção da tradição" de Hobsbawm, quanto mais a máfia moderna aparece como um agente do capital, e seguindo as formas mais violentas e regressivas de capitalismo que se possa imaginar, mais a máfia se compraz em se apresentar como defensora dos valores tradicionais. Como observa Lupo:

Nessa ideologia existe um certo grau de auto-persuasão, uma grande dose de ambição desmedida e um grau ainda maior de propaganda destinada a contrastar, na grande maioria dos casos, com uma realidade muito diferente ... Cobiça e ferocidade, como será documentado nas páginas deste livro, são características intrínsecas da máfia de ontem como de hoje, e ambas as máfias são e eram capazes de assassinar inocentes, mulheres e crianças, desafiando seus códigos de honra ... mafiosos sicilianos e italoamericanos continuam a declarar sua hostilidade às drogas, que destroem os laços socioculturais da comunidade, mesmo quando são apanhados em flagrante tráfico de narcóticos.

Da mesma forma, esse tipo de hipocrisia do código da máfia, uma mentira e deturpação na própria origem, aplica-se também às relações da máfia com o Estado. Na realidade, a máfia não é tão anti-Estado nem uma protetora[8]  das comunidades tradicionais contra a interferência governamental. É um mediador entre o Estado e os cidadãos por interesse próprios.

A história da Itália durante o fascismo mostra que a máfia e o fascismo puderam encontrar muitos pontos em comum. No fundo não eram assim tão diferentes, e muitas das principais figuras da máfia alistaram-se nas milícias fascistas, contra as ações[9]  da resistência da esquerda, com uma base de trabalhadores e movimentos de camponeses. Após a Segunda Guerra Mundial, a política italiana tem assistido a uma corrupção consistente e ao conluio entre a máfia e figuras de Estado, especialmente - mas não exclusivamente - entre os partidos de direita e centro.

Ocasionais séries de capturas de líderes mafiosos surgem, assim, como os meios do Estado de manter a máfia no lugar que quer que ela ocupe: o de facilitadores dos programas políticos da direita italiana, sem no entanto constituir um grande poder independente fora de sua própria esfera. A máfia muitas vezes se revoltou contra este o jugo, entrando ocasionalmente em guerra aberta contra o Estado - sempre com a máfia como o perdedor. Mas, no geral, aceitaram o acordo em troca do seu crescente domínio, pelo terror, sobre os produtores e pequenos capitais do sul da Itália ao longo do séc. XX.

O mesmo se aplica aos lugares da América do Norte onde a máfia estava e está suficientemente estabelecida para desempenhar a mesma função, como em algumas partes do Canadá e em cidades como Nova York e Boston. Nos EUA, onde a narrativa clássica sobre a máfia quase sempre se situa, é frequentemente retratada como o equivalente a um chefe de divisão, power-brokers protegendo pobres comunidades migrantes de italo-americanos da pequena criminalidade e da intervenção agressiva do establishment WASP. Embora exista algum fundo de verdade nisto, isto vem uma vez mais reforçar o mito da máfia como protetores[10]  das comunidades tradicionais.

Gangsters ao longo da história moderna, até ao México atual[11]  ou à Rússia, defendem-se ideologicamente pela alegação de que agem como a verdadeira fonte de ordem e justiça em comunidades pobres e de que eliminam os muitos pequenos ladrões e os credores etc. que se procuram aproveitar da população. Mas, na realidade, o que isto significa é, não a eliminação desses tais pequenos criminosos, mas sua incorporação na esfera da máfia.

Como qualquer empresa capitalista, procuram eliminar a concorrência e obter um monopólio: um monopólio de violência parasitária contra os trabalhadores e contra os capitais menores. É uma incoerência política fundamental, e um erro, levar à letra a sua justificação ideológica da busca por esse monopólio. Esta justificação é fundamentalmente análoga às alegações da classe capitalista de que, sem o monopólio do domínio económico, nenhuma produção poderia ter lugar. Precisamente porque esses objetivos[12]  são, dentro do capitalismo, fundamentalmente compatíveis, a máfia está na prática pronta para colaborar com as forças do Estado, sempre que lhe convém.

Ao contrário da mito criado em torno do código de ferro da omertà, na realidade os mafiosi traem-se uns aos outros constantemente depois de terem sido presos, a fim de obter sentenças reduzidas. Não existe aqui um princípio político, apenas a formação de uma pequena classe dominante dentro de uma formação capitalista maior. A máfia é menos que um chefe de divisão, porque não oferece serviços para além da eliminação de seus rivais. Mas é também mais que um chefe de divisão, porque medeia o domínio do capital por meio da violência, ou seja, nas situações em que os meios habituais deste último para aterrorizar os trabalhadores a aceitar a sua exploração são inadequados.

O fator determinante aqui é a hostilidade da máfia em relação às atividades independentes de organizações de trabalhadores e camponeses, a menos que tal poderia ser cooptado num programa de moral e individualista. (Aqui, parte da análise de Jameson é certamente sustentável.) O conluio entre a máfia, os partidos de direita e de centro, e não menos importante, a Igreja Católica é, portanto, (entre outras coisas) uma aliança contra a esquerda - particularmente contra os sindicatos e contra os comunistas. Esse é o verdadeiro significado da máfia hoje em dia e ao longo de toda a era capitalista, e não se limita apenas ao caso italiano: o mesmo pode, em geral, ser dito dos cartéis mexicanos e da máfia russa.

Perante tudo isto, quando se compara o tratamento da máfia no cinema americano moderno com o tratamento do Ku Klux Klan, há uma diferença marcante. O KKK, embora sendo uma organização protestante, tinha em traços gerais o mesmo papel na proteção dos interesses dos latifundiários do sul contra a potencial organização independente das forças de trabalho rurais e até mesmo urbanas na sua região específica. Como a máfia, o KKK também alegou estar vinculado pelos códigos de honra das suas velhas tradições cavalheirescas, estilo "E Tudo o Vento Levou". Também eles atuaram[13]  como intermediários entre o Estado e a sociedade, aterrorizando a população que produzia e, finalmente, serviu o propósito de manter uma ordem particular de propriedade que convinha a uma pequena elite histórica - incluindo a sua dimensão racial nos Estados Unidos. No entanto, seria inconcebível que uma série da HBO, ou uma série de filmes comercialmente e esteticamente bem-sucedidos, retratando membros do KKK e suas organizações como anti-heróis imperfeitos, mas dignos, fosse feita. Evidentemente, a questão racial deve ser tida em conta. Enquanto que blockbusters iniciais do séc. XX como "E Tudo o Vento Levou" e "O Nascimento de uma Nação" são agora condenados pelas suas representações de afro-americanos, essas críticas quase nunca são dirigidas aos filmes de máfia.

Aqueles que sabem mais sobre o género mafioso, acusar-me-ão, sem dúvida, de não apanhar os pequenos detalhes dos filmes em questão. Até pode ser verdade. Mas se eu os interpreto mal nos seus aspetos[14]  mais específicos, é precisamente porque os entendo no geral. Devemos rejeitar a romantização de uma instituição que, sob condições tanto feudais como capitalistas, sempre foi o pior executor de exploração. Assim como não há nada de heroico[15]  sobre o KKK, nem mesmo anti-heroico, o mesmo acontece com a máfia.

 

Artigo publicado na Jacobin Magazine.

 

Tradução de Adriana Rosa Delgado para acomuna.net

 

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