A emergência do capitalismo autoritário e a crise das democracias europeias Versão para impressão
Segunda, 10 Setembro 2012

 

europaA crise financeira iniciada em 2007 abriu caminho à já chamada Segunda grande depressão. Rebentou nos EUA e é a maior crise do capitalismo desde 1929. Depois disto, o mundo não poderia ficar como antes. E olhando para o que foi o pós 1929, a ascensão dos fascismos e a II Guerra Mundial recordam-nos que o capital é engenhoso e não olha a meios para garantir a superação das suas crises.

A crise das dívidas soberanas europeias subsequente à crise financeira e as medidas de austeridade implementadas nos vários Estados impõe a questão: até que ponto os efeitos desta crise do capitalismo colocam em causa o futuro das democracias europeias?

A Europa em queda

A Europa perdeu centralidade geopolítica e geoeconómica. Ainda no início do século XXI, não era assim. Mesmo sob o poder incontestáveldos Estados Unidos como única superpontência sobrevivente ao fim do mundo bi-polar (1989/90), a CE/União Europeia em conjunto com o Japão formavam com aquela as três grandes economias do mundo.

A Europa chegou mesmo a afirmar, na Estratégia de Lisboa (2000), que iria em dez anos ter um desenvolvimento tal que poderia fornecer ao mundo um modelo social e económico alternativo ao dos EUA. Baseada na ilusão da força do “grande mercado europeu” e com prego a fundo na estratégia de liberalização da Organização Mundial do Comércio, os resultados não podiam ser outros. Acresce que mesmo a Estratégia de Lisboa só foi cumprida nos aspetos de liberalização, o que implicava investimento público e as “promessas sociais” nunca se cumpriram.

O Pacto de Estabilidade e Crescimento, na Zona Euro, deu uma grande ajuda para justificar os crescentes “défices sociais”. Seja como for, competindo com países como a China (membro da OMC desde dezembro de 2001) onde a taxa de exploração é imbatível e os padrões sociais e ambientais muito baixos, a UE nunca conseguiria ser bem sucedida. Só uma Europa que não existiu, que pugnasse por uma elevação mundial desses padrões, poderia ter feito diferente.

Emergência de novos modelos capitalistas

A ascensão dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China; acrónimo cunhado e popularizado pela Goldman Sachs em 2001), posteriormente BRICS (com a África do Sul), afirmou novos protagonistas na cena mundial, mas não “democratizou” as relações internacionais. O centro do mundo passou para o Pacífico. China e EUA formam, hoje, o chamado G2. A Cimeira de Copenhaga (2009) foi o símbolo de uma Europa reduzida a uma ocasional sala de visitas da política internacional. Ao G2 formado pelos dois maiores poluidores globais – simultaneamente as duas maiores economias e os dois maiores credor (China) e devedor (EUA) – cabe a palavra final e decisiva. Um tem o dólar e, por isso, deve e não teme. Ao outro importa-lhe financiar um consumo que reverte para as suas próprias exportações, enquanto o Yuan permanece habilmente subvalorizado.

Vivemos numa era que é a da empresa transnacional, que leva a um certo grau de transnacionalização das burguesias e de internacionalização do seu poder. Porém, importa sublinhar o papel “emergente” de poderosas empresas semi-estatais como a PetroChina e a brasileira PetroBras, respetivamente sexta e oitava maior empresa a nível mundial no ranking da Forbs 2011, ou mesmo totalmente estatais como a Gazprom russa, maior exportadora de gás natural do mundo e detentora da décima quinta posição no ranking das maiores empresas mundiais.

Uma capa do The Economist (january 21st-27th 2012) ilustrava este fenómeno com Lenine sob um fundo vermelho segurando um charuto com um cifrão ($!). A capa e um dossier de catorze páginas alertavam para “A ascensão do capitalismo de Estado. A emergência do novo modelo mundial”. Reportando-se a dados de junho de 2011, o artigo “The visible hand” referia que as empresas estatais ou controladas pelo Estado representam na China 80% do valor do mercado bolsista deste país, na Rússia 62% e no Brasil 38% (índice de bolsa de valores da MSCI Inc).

Em todo o caso, a propriedade e o controlo estatal de sectores estratégicos é fundamental mas não é suficiente, pode ser uma vantagem para o desenvolvimento da economia nacional sem que isso signifique justiça social. É o caso dos emergentes.

A situação é mais gritante na China, por ser um regime de partido único. Aí impera o slogan “enriquecer é glorioso”, mas apesar da bandeira vermelha a riqueza de uns resulta de uma gigantesca taxa de exploração sofrida pela imensa maioria de chinesas e chineses. Note-se que os CEO's fazem parte do Partido Comunista Chinês e sublinhe-se, por exemplo, que a elétrica China Three Gorges Corporation entrou na privatização da EDP portuguesa com particular interesse de entrar no mercado elétrico brasileiro (EDP Brasil é detida a 51% pela EDP).

O desenvolvimento do capitalismo permitiu a ascensão do chamado “capitalismo de valores asiáticos”. O modelo que tem raízes no pragmatismo de Deng Xiaoping, mas os frutos desse sucesso do capitalismo autoritário emergem agora. Em síntese, a emergência da China prova o sucesso deste modelo que combina um Estado autoritário com o regime capitalista. Um modelo que, afinal, é mais capitalista que asiático.

Não será sintomático que o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho tenha dito, no passado 13 de maio, que o livro que mais o marcou recentemente foi o de Lee Kuan Yew? Fascinado com as transformações operadas pelo regime ditatorial de Singapura, o governante português afirmou: “Inspirador, embora Singapura seja evidentemente um regime autocrático, o que não é exatamente o que nós desejamos para Portugal”. Foi após aprender as “virtudes” do regime de Singapura numa visita ao ditador Lee Kuan Yew que Deng Xiaoping transladou para a China o modelo de capitalismo autoritário.

O que são as democracias europeias?

Afirmar a contradição existente entre o capitalismo autoritário e as democracias europeias obriga-nos a recuar no tempo para apresentar a origem do que chamamos democracias europeias. Sendo que falamos em democracias “europeias” sem qualquer objetivo de naturalizar “geopoliticamente” a circunstância histórica de terem surgido na Europa. Tal como o “capitalismo asiático” mais não é que um “capitalismo autoritário” que não é genético mas resulta de interesses sociais de classes e potências dominantes, também o Estado Social resulta de uma cedência dessas classes e potências à luta popular, num contexto histórico-geográfico particular.

As constituições europeias do pós Segunda Guerra Mundial, e mais tardiamente a portuguesa conquistada na sequência do 25 de Abril de 1974, consagraram em diferentes graus uma cidadania com direitos sociais e laborais. O forte movimento operário e a necessidade de garantir a lealdade deste movimento no contexto da Guerra Fria, a necessidade de mão de obra qualificada e diferenciada a nível técnico e superior, a reconstrução europeia e a necessidade de relançamento económico pelo desenvolvimento da produção e do consumo interno: foram fatores geradores dos Estados Sociais europeus.

Foi das nacionalizações e da apropriação fiscal de parte dos lucros privados (recuperação pública de parte da mais-valia subtraída ao trabalhador) que se garantiram os recursos necessários a essa cidadania mais avançada. Uma cidadania em que além da afirmação da igualdade formal se corrigia parte da desigualdade material e, assim, se tornava mais real a liberdade formalmente proclamada desde a Revolução Francesa.

Os impostos progressivos reinvestidos em direitos sociais universais e a propriedade pública sobre setores estratégicos formavam a base material da democracias europeias herdeiras do pós Guerra. Nem em todo o lado foi igual, e teve momentos distintos. Onde as particularidades o permitiram e a isso conduziram (modelo nórdico) o Estado Social assentou mais na fiscalidade. Mas noutras paragens (o modelo continental, o da primeira presidência de François Mitterrand, marcada pela lei de 13 de fevereiro de 1982) a aposta foi, e bem, nas nacionalizações. Só um forte sector público garantia o desenvolvimento, os direitos dos trabalhadores, os serviços públicos, o progresso e a democracia.

Ultrapassagem do neoliberalismo... pela direita

É sobejamente conhecido que foi o neoliberalismo que iniciou o desmantelamento do Estado Social. Desde a evolução das tecnologias (equipamentos, organização do trabalho) ao direito e organizações internacionais, tudo foi mobilizado pelas classes dominantes para operar a “contra reforma” do capital contra o trabalho.

Houve discursos sobre a reinvenção do Estados Social, como uma forma de torná-lo “viável na era da globalização”. A lógica era a mesma de Bill Clinton, “É a economia, estúpido”, a naturalização do processo iniciado por Regan e Thatcher. Toda a Thatcher teve o seu Blair. As capitulações foram muitas e as cooptações também, a social-democracia oficial abandonou a defesa da propriedade pública, privatizou, passou a carga fiscal para o trabalho e aliviou o capital, passou o investimento público para a lógica das lesivas parcerias publico-privadas, abraçou as “inevitabilidades” da flexibilidade laboral (ainda que dissesse, episodicamente, que era a “flexigurança”).

No pós crise de 2007-2011, o quadro internacional desfavorável à Europa e favorável ao capitalismo autoritário coloca em causa democracias europeias já fragilizadas por mais de duas décadas de neoliberalismo. Mas foram as “respostas à crise económica”, a austeridade destruidora como estratégia de recomposição do capital, que abriram caminho à crise social e política destas democracias.

A segurança social e os demais serviços públicos garantiam algum nível de vida, com efeitos positivos para o mercado interno. Também o modelo do crédito fácil, embora mais relevante nos EUA, compensava a estagnação dos salários. Como o embuste dos ativos tóxicos faliu e a estratégia de recomposição do capital é o empobrecimento, gera-se “insegurança social”.

Na Europa só se salvam os bancos. Só os prejuízos são socializados, tornando pública a dívida privada. A finança atacou as dívidas públicas, especulou com apoio das agências de rating, cuja propriedade pertence aos próprios especuladores. Os Estados e as suas organizações e bancos centrais tornaram-se garantia de recapitalização da banca privada. Isso não é o Estado mínimo pregado pelo neoliberalismo. E muito menos o Estado subsidiário do mercado inventado pelo transgénico social-liberalismo.

Neste modelo, o Estado é interventivamente generoso com a banca, socialmente austero e mais conservador. Defende empobrecimento do povo como punição/sacrifício necessários à “salvação do país”. Para si, assume apenas alguns cuidados para com os mais pobres entre os pobres e apela à caridade privada ou, mesmo, à emigração da juventude. E como só tem pobreza para prometer ao povo torna-se gradualmente mais autoritário para manter a ordem. A própria democracia formal (liberdade de expressão, direitos de associação, leis eleitorais) vai sendo corroída.

No meio da insegurança social, o conservadorismo e o protecionismo social-xenófobo (Marine Le Pen) fazem caminho em várias frentes. O desemprego, precariedade e baixos salários afetam mais as mulheres e isso tem consequências diretas no recuo dos seus direitos. A agenda conservadora reinventa-se em ofensivas sobre a saúde reprodutiva e restauração de proibições ou taxação do aborto. A lógica patriarcal-austeritária empurra a mulher para a economia doméstica do cuidado, absorvendo parte da violência do empobrecimento. Também os direitos LGBT sofrem ataques, com destaque para a nova constituição da Hungria (mais confessional e menos republicana).

Autoritarismo federal

A Comissão Europeia e os Governos condenaram os povos às receitas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Central Europeu. A proposta de uma agência de notação pública europeia nunca avançou e o dinheiro do BCE, dinheiro que é público, financia a especulação através da compra de dívida pública apenas no mercado secundário e após financiar a banca privada a baixo custo. Só desenvolvimento e as democracias é que não podem receber financiamento direto do dinheiro público europeu.

O Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária foi assinado por todos os Estados-Membros da UE à exceção do Reino Unido e da República Checa, fazendo uma finta ao próprio direito comunitário. O objetivo era impor a inscrição do vírus monetarista nas constituições ou lei equivalente: a “regra de ouro” do limite de 0,5%. Ainda que o tratado venha a ser outro, não desistirão da ideia.

O federalismo orçamental é inaceitável. Sem soberania orçamental e fiscal não há democracia. Nenhuma das nossas democracias pode ser privada do direito soberano de decidir investir na promoção do emprego, de garantir e aprofundar os seus serviços públicos, de preservar a propriedade pública que sustenta essas políticas. O que a Europa precisa não é de imposições de uma política orçamental ao Estados-Membros que esteja de acordo com os interesses dominantes nas principais potências como a Alemanha e a França. A Europa precisa de uma grande solidariedade, um orçamento maior que possibilite uma maior cooperação e uma grande estratégia de desenvolvimento comum de todos os Estados-Membros e ao serviço de todos eles como iguais.

A tecnocracia ataca a democracia

A chantagem da inevitabilidade da austeridade como resposta à crise percorre todos os Estados-Membros e não apenas os intervencionados – Grécia, Portugal e Irlanda. A política BCE/FMI vai entrado em pacotes de austeridade sempre com a desculpa de que isso é para não ter de “chamar” o FMI.

Casos mais graves e sintomáticos são os da Grécia e de Itália. À margem de qualquer legitimidade democrática, os governos da Grécia e da Itália passaram a ser chefiados por dois tecnocratas do BCE, ambos com a Goldman Sachs no seu currículo. Na Grécia. o pretexto para empossar o não-eleito e ex vice-presidente do BCE Papademos foi negar ao povo um referendo sobre as medidas de austeridade.

Além de ex presidente do BCE, Papademos foi, entre 1994 e 2002, presidente do Banco Central da Grécia, um colaborador ativo da maquilhagem das contas públicas atribuída aos serviços Goldman Sachs. O governo de Lucas Papademos (11 de novembro de 2011 – 16 de maio de 2012), novo governo da Troika, foi empossado com o apoio do PASOK (membro do Partido Socialista Europeu), a Nova Democracia (membro do Partido Popular Europeu) e o LAOS (extrema-direita). A extrema-direita não entrava no governo desde o fim do regime militar grego, em 1974. Embora tenha saído do governo em fevereiro de 2012 pelo seu próprio pé, não nos poderemos esquecer que lá chegou pela via da Troika.

O governo do também “independente” e eurocrata Mario Monti iniciou funções a 16 de novembro de 2011. Dias antes, a 9 de novembro, Monti foi nomeado para senador vitalício pelo presidente da Republica Italiana Giorgio Napolitano. Este primeiro-ministro não eleito foi comissário europeu entre 1995 e 2004, senior advisor da Golman Sachs e apoiante do movimento federalista europeu Grupo Spinelli. Mas não é só a ligação à Golman Sachs e à eurocracia o que une Monti e Papademos, ambos são membros do think-tank Comissão Trilateral, criado por David Rockefeller, em 1973.

O respeito de Monti pela democracia pode ser visto no caso da privatização da água. Houve uma esmagadora vitória nos referendos contra as leis de aceleração da privatização da água (95,7% dos votos) e o aumento das tarifas de acordo com o capital investido (96,1%), em 12 e 13 de junho de 2011 – nas mesmas datas foram igualmente derrotadas a imunidade de Berlusconi e a energia nuclear. Porém o novo primeiro-ministro fez vista grossa a um refendo, que até Berlusconi respeitou (!). Os serviços públicos municipais, incluindo a distribuição de água, entraram no vasto rol das privatizações, junto com: Ferrovie dello Stato, ANAS, AGIP, Grupo ENI, Posta e Banco Posta, ALITALIA, ENEL.

A dividocracia contra o futuro

Governos não-eleitos e outros governos submissos ao regime dos credores colocam em causa a democracia. A Troika, na Grécia, em Portugal e na Irlanda, com os seus calendários de legislação e privatização impõe um regime colonial. Nenhum “credor” de uma dívida soberana pode impor mudanças de regimes sociais, destruição do património público e ruína da economia. Querem decidir desde a propriedade da água, ao código de trabalho e ao número de autarquias.

Sem soberania popular não há democracia. O regime denunciado no documentário grego Dividocracia (Katerina Kitidi e Aris Hatzistefanou, 2011) não é novo e é necessário a todos os processos de dilapidação da propriedade pública, como os mesmos autores denunciam em Catastroika (2012). A imposição da dividocracia no berço histórico da democracia, no contexto do ataque à cidadania com direitos sociais, é um sinal para o mundo. O capitalismo já não tolera o progresso que a democracia alcançou na Europa. Cabe à luta popular a reconquista do futuro.

Bruno Góis

artigo publicado originalmente em Vírus. (nr. 1, II Série). junho 2012. pp 28-32.

 

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