Fazer públicos os espaços das cidades Versão para impressão
Quarta, 08 Agosto 2012

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Quando falamos de espaços públicos podemos concebê-los a seguinte forma: espaços livres versus espaços securitários, militarizados ou blindados. Estes últimos, por estrita definição, fogem já das dimensões constitutivas do espaço público (de livre acesso, físico e simbólico, constituindo nós articuladores para a multifuncionalidade dos territórios, conferindo-lhes urbanidade, espaços comuns de múltiplos usos e diferenciadas fronteiras), mas permitem, por relação, uma melhor compreensão do fenómeno.

Perante o clamor da cidade perigosa e da disseminação dos modos de vida flexíveis e precários, ergue-se o novo panóptico, disseminam-se a videovigilância e os mecanismos de cidadania vigiada. Poderia falar dos condomínios fechados com segurança privada, das novas cidades-jardim privatizadas, como o projecto Haffen City, actualmente em curso em Hamburgo, onde os jardins dos luxuosos apartamentos se dão à «fruição» dos transeuntes por um sistema de pequenas pontes pedonais que permite o voyeurismo dos não-proprietários face ao verde exclusivo dos residentes ou ainda de certa ruas e praças sujeitas ao que Mitchell apelidou de «bubble laws», um conjunto de dispositivos legais e informais que instaura uma sobreautoridade para legitimar um uso altamente selectivo de tais espaços. Mecanismos de excepção transformam-se, por conseguinte, numa normatividade hegemónica assente na regulação securitária dos espaços “públicos”.

O medo da cidade facilita algum conforto que se procura na net e nas comunidades virtuais mas também nas cidades-fantasia, nos parques temáticos e nos centros comerciais onde a arquitectura pós-moderna do neobarroco, do pastiche, da citação, do ecletismo e do ornamento (é célebre a frase de Robert Venturi: «Less is bore»...) procura a popularidade e a comunicabilidade imediatas.

Pelo contrário, os espaços verdadeiramente públicos radicam na ordem da interacção e da sociabilidade de proximidade, isto é, das relações sociais face a face, ainda que exista uma certa distância entre a desatenção civil de que fala Goffman (muito próxima da atitude blasé analisada por Simmel) e o contacto corpo a corpo de encurtamento da distância social.

Os espaços verdadeiramente públicos tendem a escapar às fachadas e à visibilidade, fluindo na vida quotidiana como lugares intersticiais, negociados e experimentados muitas vezes de forma agonística, imbricados na estruturação de novas subjectividades e encontros, radicados no princípio da não-indiferença à diferença. Trata-se da apologia da especificidade de um tempo urbano, de alta densidade, especialmente associado ao caminhar na cidade e à apropriação das ruas, praças e jardins, encarados como articuladores, espécies de rótulas ou nós que combatem a tendência para a cidade
esquartejada, pericial, hiperespecializada, social e culturalmente segregada.

Não é certamente por acaso que as representações mediatizadas da cidade – as tais que circulam num hiperespaço onde parecem ter ganho consistência própria, autopoiética, independentemente dos sujeitos que as produziram – nos sugerem – impõem? – uma imagem vista de cima para baixo, em grandes planos ou quedas vertiginosas. O retrato da cidade que pretendemos sugerir tem, pelo contrário, contornos de grande proximidade: olha-se para o lado, para cima, em frente, na medida dos nossos sentidos e na largueza do gesto. Completa-se o olhar com os odores que brotam da atmosfera circundante e com a sensibilidade táctil de quem toca, por experiência simultaneamente pessoal e social, as esquinas da cidade.

Mas o tempo para andar pode igualmente ser precioso sob um outro ponto de vista: a intensa aprendizagem que proporciona a propósito da ordem da interacção em espaço urbano. Ao caminhar, encontro outros, semelhantes ou radicalmente diferentes. Faço parte de uma espécie de comunidade efémera que mobiliza competências e recursos de negociação e ajustamento identitários. Como percepcionar a proximidade e a estranheza?

Como gerir relações de poder no espaço público da cidade? Como interiorizar e exteriorizar signos, códigos de conduta, rituais, modos de apresentação de si? Terei tempo e recantos de sociabilidade para estreitar relações? Ou sou mero passante, transeunte que atravessa as praças secas e estilizadas?
Ao andar vejo e sou visto, crio uma cenografia num palco preexistente que a encenação apropria, tantas vezes de improviso. As aprendizagens serão tão mais profícuas quanto a qualidade do espaço público o permitir, e essa é a medida da diversidade dos encontros, desde o que proporciona breve troca de olhares, até ao que leva à convivialidade mais ou menos festiva quando se pára para estar com alguém.

Ao olharmos para a nossa cidade pela escala de observação da marcha, deparamo-nos com espaços públicos de diversa composição e qualidade. Uns, de cariz tradicional, com forte carga histórica, patrimonial e até monumental. Outros, recém-regenerados, com maior ou menor sucesso. Mas cabe-nos, também, a possibilidade de os inventar ou de tornar efectivos espaços públicos desactivados e/ou potenciais. Prédios desabitados que se tornam lugares de produção e fruição artística colectiva, sem reservas de direito de admissão; as arcadas que se metamorfoseiam em cena de expressão e performance juvenil (1); o degrau que se transforma em lugar de descanso, conversa e convívio; as paredes canibalizadas por inscrições e imagéticas várias.

Pela metodologia do andar elabora-se, a pouco e pouco, uma crítica sistemática à noção «normal» e padronizada de cidadão, herança liberal da esfera pública burguesa, em que as categorias são abstractas e encontram na sua suposta neutralidade a força inteira do seu arbitrário (a autonomia do cidadão é a subordinação do outro; a liberdade exerce-se entre «iguais»). Como referem Madeleine Arnot e Jo-Anne Dillabough, “a nível discursivo, as sociedades democrático-liberais dissimulam as relações sociais de poder (…) nas modernas nações da Europa Ocidental, o conceito de cidadão abstracto, como indivíduo
autónomo, oculta indiscutivelmente as condições sociais da sua produção”(2). Ou ainda: “o cidadão per se não possui identidade substancial (…) A partir deste ponto de vista, o conceito de cidadania denota um espaço vazio (…) Assim, para transformar um sujeito falante num «cidadão», para se tornar num «Eu» falante no espaço vazio identificado como cidadania, os processos sociais de identificação com os outros são também importantes”(3).

Ora, caminhando, eis a proposta, prática e analítica, as identificações vão sendo forjadas de forma dinâmica, dialógica e multifacetada, em permanente relação e aprendizagem pela experiência – neste caso, a experiência de andar na e pela cidade, de conceber o sujeito andante como sujeito falante, que inscreve os seus passos na ordem do discurso, uma outra forma, afinal, de fazer lugar, ocupando os espaços vazios da cidadania.

João Teixeira Lopes

(1) As já célebres e divertidas arcadas da Dorninha, uma das plataformas de observação
etnográfica de José Machado Pais – Vd. Culturas Juvenis, Lisboa, Imprensa Nacional Casa
da Moeda, 1994.
(2) Vd. Madeleine Arnot e Jo-Anne Dillabough, “Reformular os debates educacionais sobre
a cidadania, agência e identidade das mulheres” in Ex Aequo, nº 7, 2002, p. 21.
(3) Idem, ibidem, p. 27, itálicos das autoras.

 

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