Dia Internacional da Mulher – a mulher europeia e uma Convenção como arma Versão para impressão
Quinta, 08 Março 2012

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Corremos o risco de pensar que a Europa está longe de ser espaço de discriminação de género, palco de desigualdade e violência. Corremos o risco de pensar que somos suficientemente evoluídos, estamos devidamente equipados, e que nos preocupamos conveniente com a situação das nossas mulheres. Corremos o risco de pensar que a luta feminista é mais-valia do passado, sem razão de ser no mundo europeu actual, chegando inclusivamente ao ponto de considerar esta batalha foco de discriminação contra os homens e, bem assim, inversamente paritária.

Pelo menos parece ser essa uma das novas ameaças à luta das mulheres na Europa, tendo-se reflectido inclusivamente nos trabalhos preparatórios da Convenção Europeia para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica (doravante, a Convenção), quase minando a sua extensão. Felizmente, tais visões, comprovadamente desfasadas da realidade1, não eram maioritárias e como tal não vingaram, sendo este texto, já assinado pelo Estado Português (mas ainda à espera de ratificação), dos mais progressistas até hoje vistos.

Em Portugal, vivemos o legado de uma sociedade machista de pensamento enraizado que só anos de educação e investimento poderão mudar. E ainda que a evolução seja manifestamente positiva e o esforço estatal louvável (Portugal é um dos países que, mesmo sem que esta Convenção esteja em vigor, dispõe já de organismo com recursos próprios dedicado à implementação de políticas de género, nele integrando também associações da sociedade civil – Comissão para a Igualdade de Género, CIG), o caminho a percorrer é ainda moroso.

Os mais recentes dados estatísticos demonstram o quão errada essa perspectiva limitativa seria em Portugal. A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) revelou ainda a semana passada que 83% dos casos de pedidos de ajuda por violência doméstica que chegaram às suas instalações partiam de vítimas mulheres. Recentemente, duas sentenças judiciais2 chocaram a sociedade portuguesa pelo machismo que acarretam, ao arrepio de toda a legislação nacional e internacional, e todas as políticas implementadas. No ano de 2011 (até 11 de Novembro de 2011) mais 23 mulheres morreram assassinadas em consequência de violência conjugal, segundo dados da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), e cada vez mais se torna real na mente dos portugueses a existência de tráfico de mulheres para exploração sexual no nosso país.

Estes padrões de violência afectam potencialmente toda e qualquer mulher, sendo particularmente vulneráveis as mulheres que pertencem a grupos minoritários da sociedade, quer por serem também pessoas com deficiência, quer por serem imigrantes. Além dos problemas que enfrentam por se incluirem em grupos tantas vezes marginalizados, são ainda mulheres expostas a toda a discriminação de género a que ainda assistimos no nosso país e, ademais, em determinados casos, a certos tipos de violência muito específicos, como seja a mutilação genital feminina.

Numa época em que as palavras de ordem parecem ser austeridade e corte orçamental, urge perguntar onde se traça o limite do desinvestimento e o que podemos aceitar como medida de estabilização nacional. Ao longo de toda a História assistimos ao retrocesso dos Direitos Humanos em nome do “esforço nacional”. Numa altura em que se aceita a precariedade com medo da total ausência de emprego, em que os direitos laborais e sociais com tanta luta adquiridos são reduzidos e tantas vezes extintos, importa destrinçar o supérfluo do que nos pertence por direito, pela nossa mera existência, por sermos cidadãos e cidadãs e antes de tudo isso humanos.

A Convenção tem desde logo a mais valia de exigir uma alocação coerente e eficaz de recursos ao combate a longo prazo à violência contra mulheres. Esta reflecte o estado actual dos padrões internacionais relativos à temática e espelha a evolução do conhecimento na área, abordando o problema de forma holística, aprofundada, e atribuindo carácter vinculativo a conclusões de muitas recomendações e jurisprudência dispersas3. Imbuída num espírito de interdisciplinariedade, a Convenção estabelece a importância da prevenção acima da reacção, e de medidas preventivas baseadas nas reais necessidades das vítimas, incluindo a aposta na educação, tendo particular importância a educação para a extinção dos preconceitos enraizados quanto aos “papéis femininos” e “lugares e questões da mulher”. Nesta promove-se o verdadeiro empoderamento da mulher sobre uma perspectiva transversal a toda a vida em sociedade. Estabelece-se ainda um mecanismo de monitorização que permite avaliar a implementação efectiva destas normas pelos Estados, incluindo não só a auto-avaliação estatal mas também relatórios de organizações não governamentais, visitas ao país para aferir os dados recolhidos pelos documentos submetidos e apresentação de recomendações gerais à implementação da Convenção. Este mecanismo é de tal forma inovador que permite inclusivamente a tomada de diligências em caso de urgência para prevenir situações de violência continuada, grave e persistente que reflictam um padrão de violência contra mulheres.

Diversas formas de violência contra mulheres são particularmente abordadas nesta Convenção do Conselho da Europa, entre elas a mutilação genital feminina. No âmbito desta Convenção, são mulheres não só as maiores de 18 anos mas toda e qualquer mulher, mesmo que menor. Este é um passo importante não só para casos de mutilação genital, mas que obviamente tem especial impacto sobre este flagelo. A previsão explícita da jurisdição em casos de crimes cometidos sobre residentes na Europa ainda que fora do espaço europeu, e muito em especial a obrigatoriedade de recolher dados estatísticos têm grande impacto na luta pela erradicação desta prática cultural nefasta. Esta forma de tortura4, que afecta potencialmente 8000 mulheres diariamente só em solo europeu, é fracamente documentada, existindo somente estimativas do Parlamento Europeu, mas nenhum dado concreto sobre quantas mulheres são efectivamente vitimizadas dentro dos diversos Estados.

A Amnistia Internacional desde sempre luta pela promoção dos Direitos das Mulheres e para que não esqueçamos que o que leva séculos a ser alcançado pode tão bem ser destruído em dois segundos apenas. Por isso, tem apelado desde o primeiro momento pela ratificação desta Convenção, que não é apenas mais um instrumento repetindo os direitos das mulheres europeias de forma balofa, mas antes um mecanismo que, não atribuíndo novos direitos, concretamente impõe meios para colmatar injustiças endémicas e prevenir futuras violações dos Direitos das Mulheres.

Neste Dia Internacional da Mulher, em que tanto havia e haverá para dizer, opto por me junto a minha voz ao apelo da Amnistia Internacional e da European Women's Lobby e relembro que todos nós, membros da sociedade civil, somos responsáveis por exigir aos nossos Estados que cumpram os compromissos assumidos e os tornem eficazes. Todos nós temos uma palavra decisiva no futuro das mulheres que nos rodeiam.

Ana Margarida Ferreira

 

1Ver, por exemplo, Dobash and Dobash "Women's violence to men in intimate relationships: working on a puzzle" British Journal of criminology 44, n.º 3(2004) páginas 324-349. No mesmo sentido vão todos os recentes padrões internacionais de Direitos Humanos e muito em especial o relatório especiais do Secretário Geral das Nações Unidas sobre violência contra mulheres: In-depth study on all forms of violence against women, UN Secretary General, 6 Julho 2006, UN Index A/61/122/Add.1, parágrafo 1.

2Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Setembro de 2011 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Abril de 2011.

3Recomendações Gerais do Comité para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres e também jurisprudência recente do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (em particular M.C. v Bulgaria e Opuz v Turkey).

4Assim reconhecida pelo Relator Especial das Nações Unidas para a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes em relatório de 2008.

 

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