Tragédia e farsa Versão para impressão
Sábado, 25 Fevereiro 2012

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A finança a acumular com a bancarrota e a necessidade de alternativa e amplitude para destituir o capital

“Hegel fez notar algures, que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Estas são as primeiras palavras de Marx n,O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. Estabelecia, na altura, uma ponte de comparação entre a França de final do século XVIII e a França de meados do século XIX. Louis Bonaparte é a farsa de Napoleão; a burguesia de 1848 é a farsa da burguesia emergente da Revolução de 1789 que decapitou o feudalismo e que construiu as fundações de uma sociedade burguesa.

Em 1848 a luta de classes encontra um pico, não só em França, mas principalmente em França... À cabeça da burguesia instalou-se a aristocracia financeira, empurrando para fora do poder político (e da repartição do saque) a pequena burguesia, o comércio, o campesinato... Diz Marx em A luta de classes em França 1848-1850: “Quem dominou sob Luís Filipe não foi a burguesia francesa mas uma fracção dela” (p. 45) e expõe o mecanismo de exploração e espoliação do Estado por parte da burguesia financeira: “o incremento da dívida pública interessava directamente à facção burguesa que governava e legislava através das Câmaras. O déficit do Estado era precisamente o verdadeiro objecto das suas especulações e a sua principal fonte de enriquecimento. Cada ano, um novo déficit. Cada quatro ou cinco anos, um novo empréstimo. E cada novo empréstimo oferecia à aristocracia financeira uma nova ocasião de burlar um Estado mantido artificialmente à beira da bancarrota” (p. 47).

O relato parece-nos actual e presente, não é? Afinal 2012 é 1848 outra vez? Continuemos a acompanhar Marx no seu relato: “Além disso, as enormes somas que deste modo passavam pelas mãos do Estado davam ocasião a contratos de fornecimento que eram outras tantas burlas, subornos, vigarices e malandrices de toda a espécie” (p. 48), concluindo-se perante esta realidade que “a aristocracia financeira, tanto nos seus métodos de aquisição como nos seus prazeres, não é mais do que o renascimento do lupemproletariado nas altas esferas da sociedade burguesa” (p. 50).

França de 1848: a burguesia da finança comanda o país; deixa cair a pequena burguesia; comanda a máquina de Estado e usa-a como instrumento de saque e criação de negócios artificiais que tinham três consequências imediatas: bancarrota do Estado; especulação e acumulação permanente à custa do Estado; aumento de impostos sobre as classes exploradas para suportar o modus vivendis de uma burguesia parasita e espoliadora que tinha feito ninho na arquitectura do Estado.

Se a história se repetiu entre o final do séc. XVIII e meados do séc. XIX, foi a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa; parece que a tragédia e a farsa, em conjunto, trouxeram à boca de cena da história uma estória muito parecida, agora no séc. XXI.

Marx coloca a nu uma burguesia rentista que vampiriza o Estado; uma fração da burguesia que tomou de assalto o próprio Estado; uma aristocracia financeira que vive da especulação sobre a dívida pública e uma alta burguesia que, ao mesmo tempo, vive dos negócios ruinosos que o Estado faz e que leva a endividar-se cada vez mais. Do outro lado da barricada, está o proletariado, a pequena burguesia e o campesinato sobre quem recaem os impostos e os sacrifícios, como fatura pesada da austeridade.

A burguesia, que teve o seu papel revolucionário na História, acumula cheiro a putrefato. Hoje vemo-la nesse papel de lupemburguesia, improdutiva, rentista e parasitária, e constatamos a irracionalidade do capitalismo. Na miragem do lucro e da acumulação constante essa classe revolucionária de 1789 é hoje cada vez mais reaccionária, conservadora. Para a maior parte da população ela é um sistema de destruição, armada de austeridade. A única coisa que tem a impor são sacrifícios e recessão, e para quê? Para poder continuar a sua via rentista de acumulação.

As comparações históricas, já sabemos, nunca podem ser consideradas a 100%, mas é pelo menos curiosidade histórica, encontrar algumas pontes que lançam contato entre períodos tão diferentes e tão distantes...

Hoje vemos essa mesma burguesia financeira a tomar conta do poder político, a posicionar os seus homens em agências de rating e bancos centrais (e muitas vezes a transferi-los destes para Governos); vemos essa burguesia a mandar na opção política, obrigando o Estado a grandes empréstimos que empenharão as contas públicas mas que servirão para ser injetados nas contas do sistema financeiro; vemos depois essa mesma burguesia financeira a utilizar a dívida pública como especulação e meio para uma maior acumulação e encontramos o poder político e as chamadas entidades reguladoras completamente reféns e dominadas por esses sequestradores. Veja-se bem o Banco Central Europeu... Há muito tempo que se percebeu que bastaria que essa entidade emprestasse dinheiro diretamente aos Estados para acabar com a especulação e para intervir com racionalidade sobre dívidas públicas. Em vez disso, o BCE, em altura de Natal, decidiu colocar à disposição da banca privada 500 mil milhões de euros para que esta, num simples papel de intermediário, emprestasse aos Estados europeus a um juro de 5%, 6%, 7%... Recordamos também que Portugal acordou com a troika um empréstimo de 80 mil milhões de euros, essencialmente, para injetar na banca (ora diretamente; ora indiretamente, via pagamento de juros e dívidas)... Nada fica para a economia a não ser a recessão. Nada fica para as pessoas a não ser a austeridade. Para a banca, toda a especulação, todo o jogo montado em redor de um jogo que tem como objetivo o rentismo eterno, a acumulação permanente dessa burguesia parasitária que se movimenta na finança...

Percebemos, no entanto, que nestes tempos de especulação permanente, existem fraturas dentro da burguesia. A este saque feito aos Estados, através da especulação permanente, há apenas uma parte da burguesia a ganhar. O saque não é distribuído por todos... A recessão que é trazida com a austeridade destrói a pequena burguesia e assusta alguma burguesia industrial, por via da redução generalizada do poder de compra. Alguns governos tentam conciliar as partes fraturadas da burguesia, promovendo um abaixamento brutal do valor do trabalho (um piscar de olhos à burguesia industrial), mas não conseguem esconder que a pequena burguesia está a conhecer a proletarização e a queda impetuosa na escada da 'mobilidade social'.

Percebemos também que a austeridade enquanto agressão generalizada à grande maioria da população, coloca o proletariado (quer seja a imensa massa desempregada, quer seja a imensa massa empregada que se vê desapossada do valor do seu trabalho) em oposição frontal à burguesia que se colocou à cabeça do Estado. Cada vez mais se torna claro aos olhos da imensa população que os sacrifícios que pendem sobre os seus pescoços são por culpa da banca, da grande burguesia que andou a viver acima das possibilidades do país e da burguesia industrial a quem o governo pisca os olhos com a desvalorização da mercadoria trabalho. Esta oposição torna-se mais clara e visível e, caso ainda não seja completamente clarividente, devemos ter intervenção nesse sentido, mostrando que interesses se confrontam frontalmente neste momento.

Ao contrário do que acontecia ainda recentemente, quando o discurso do capitalismo ainda era o do neoliberalismo; onde o discurso do capitalismo ainda era o do mercado recheado de oportunidades para todos; onde o discurso do capitalismo ainda era o do crescimento económico com uma teoria de deixar as migalhas para os de baixo, o capitalismo está a conhecer a desfiliação das massas. Não será por acaso que está a virar neoconservador e se revela hostil à própria democracia, inclusivamente a democracia representativa... Vejamos os exemplos de Grécia e de Itália, onde se constituíram novos Governos por nomeação, mobilizando homens da finança para os mesmos. É uma novidade esta, a nomeação de governos sem que a população seja ouvida. A constituição de governos sem eleições. Não é uma novidade por ser uma inovação; é uma novidade por ser um salto atrás de muitos anos e por demonstrar que há um vínculo que se perdeu entre o capitalismo e a massa. Até aqui, com o discurso das promessas do maná do mercado, o capitalismo neoliberal, conseguiu congregar à sua volta o apoio de uma maioria eleitoral; agora, perante as medidas de austeridade que são claramente um ataque de classe violentíssimo, o capitalismo e a massa parecem estar a desligar-se e o capitalismo está a adotar uma versão neoconservadora securitária e anti-democrática.

Perante estas assumpções há quem possa dizer – e com o seu grau de correção – que se este desligamento entre massas e capital, que se a clareza de uma oposição frontal entre burguesia e proletariado (por via da austeridade) existissem de facto, então a austeridade já teria sido combatida e os povos dos países (pelo menos os que mais sofrem com a austeridade) já se teriam levantado e imposto, senão um novo regime, ao menos uma nova política. Mas nós sabemos que os processos históricos são, para quem os vive no presente, mais lentos do que isso e que existe muito mais a considerar do que essa linha reta que desenha as pessoas coletivas como dispositivos que agem apenas em função de um processo de estímulo-resposta. Ainda assim, não podemos, certamente, ignorar que algo está a mexer...

Não podemos ignorar a contestação em crescendo na Europa e no mundo que mostra, inclusivamente, uma perspetiva de classe ao opor os 1% usurpadores aos 99% que pagam a fatura; não podemos ignorar os movimentos além sindicatos e além partidos que têm preenchido a contestação de rua...

Alguns investigadores que nos anos 30 se dedicaram a estudar o impacto do desemprego nas atitudes políticas dos desempregados, concluíram de forma muito interessante que a percepção da situação social em que se encontram, por si só, não leva a uma consciência de classe. Aqueles que, por via de uma privação e de um stress económico muito profundo se tornam mais apáticos, tendem até a assimilar posições mais conservadoras que apenas requerem conformismo e acriticismo; mais difícil é aderir a uma perspetiva socialista, pois essa exige dos indivíduos a mobilização e a ação.

Esta será uma das grandes discussões do quotidiano: a passagem entre a consciência de si para a consciência para si; isto é, a passagem da consciência da situação social individual para a consciência coletiva de classe...

Parece-me que – e certamente que esta não será via única – a construção e demonstração de uma alternativa é um passo no combate à resignação e à apatia. Perante a austeridade e num momento em que se acumulam velórios (ainda sobre o comunismo, sobre o social-liberalismo e sobre o neoliberalismo e as suas maravilhas do mercado), ficando apenas o neoconservadorismo austeritário, a construção de uma alternativa que possa combater, derrotar e destituir a austeridade e essa lupemburguesia parasitária é condição para a mobilização das massas que vivem um processo de afastamento do capitalismo.

Essa alternativa implica perceber as fraturas da burguesia e trazer para a nossa luta a pequena-burguesia sofredora e oposicionista da burguesia que controla o(s) governo(s); implica também perceber os sentimentos anti-sistema de Indignados e outros, garantindo-lhes o seu espaço e autonomia, mas lançando reivindicações como solo comum para se marchar juntos.

Há muitas alianças a fazer nessa construção de uma alternativa que se imponha para derrotar o neoconservadorismo, mas há também a necessidade de não confundir ou perder o caminho. Simplificando: há alianças a fazer e um caminho a não perder. Nas alianças com a pequena burguesia não podemos acrescentar a confusão de fazer alianças com os partidos da burguesia; na aliança com os movimentos de indignados não podemos acrescentar nem a tentação de controleirismo do movimento nem a confusão de virarmos anti-parlamentaristas.

Sabemos que dos partidos da burguesia não esperamos nada a não ser o reiterado ataque à população e sabemos que estes representam cada vez menos essa pequena burguesia e alguma burguesia industrial que está a ser eliminada na voragem de concentração e acumulação do capital; sabemos ao mesmo tempo que o parlamentarismo é uma das nossas formas de luta contra o capitalismo, contra o neoconservadorismo e, por isso, não abdicamos dela. Engels ensinou-nos*: “a época dos ataques de surpresa, das revoluções feitas por pequenas minorias conscientes à cabeça de massas inconscientes, passou. Então, onde se trate de uma transformação completa da organização social, têm que intervir directamente as massas” (p.35), e ensinou-nos ainda a “não desgastar em operações de descoberta esta força de choque que se fortalece diariamente, mas conservá-la intacta até ao dia decisivo: tal é a nossa tarefa principal” (p. 39).

Na construção dessa alternativa ao neoconservadorismo temos que ter a capacidade de alianças e de envolvimento de muitas pessoas, assim como a capacidade de não incitar nem participar em escaramuças estéreis que o infantilismo radical por vezes defende, às vezes mais para inflacionar o seu ego pessoal do que para fazer avançar a luta de classes. Temos também que perceber que o nosso papel, quando defronte dessa besta putrefacta que é o capitalismo, não é do ressuscitador humanista, mas sim o do eficaz e organizado coveiro!

Moisés Ferreira

Referências bibliográficas:

Eisenberg, P.; Lazarsfeld, P.F. (1938). The psychological effects of unemployment. Psychological Bulletin, 35, 258-290

Marx, K. (1971). A luta de classes em França  de1848 a 1850. Textos Nosso Tempo

Marx, K. (1975). O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. Coimbra: Centelha

* No prefácio do livro A luta de classes em França 1848-1850

 

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