Uma perspectiva crítica à sociedade do risco Versão para impressão
Terça, 24 Janeiro 2012

nuclear_warmingO argumento orientador da tese de Beck é que a sociedade industrial, que se caracteriza pela produção e distribuição de bens foi substituída pela sociedade de risco, na qual a distribuição dos riscos não corresponde às diferenças sociais, económicas e geográficas, distinções típicas da primeira modernidade.

Artigo de Fabian Figueiredo

É útil para se prosseguir com a reflexão, entender como se define risco neste âmbito académico específico proposto pelo autor. Ao contrário da noção do senso comum risco em Beck não significa directamente ameaça ou perigo, como explica Sérgio Costa “no trabalho do autor, risco assume a conotação de categoria estruturante da “segunda modernidade” e abrange, para além das ameaças objectivamente existentes, os processos e os mecanismos sociais de percepção, decodificação e prevenção contra riscos. Diferentemente das ameaças contra as quais as sociedades, na primeira fase da modernidade, a industrial, criaram seus mecanismos de protecção, quais sejam, os perigos naturais, a escassez material, as enfermidades e outras, trata-se, na segunda modernidade, dos riscos produzidos pela própria industrialização, processo nuclear e fundante da modernidade (2004).”
A sociedade de risco refere-se a riscos advindos da própria natureza do processo de industrialização, de efeitos perversos ou contraditórios como a contaminação da água e do ar, envenenamento alimentar, ameaças de explosão nuclear. O que para o autor é uma espécie de barreira paradoxal da plena modernização da sociedade no seu conjunto, no âmbito da segunda modernidade.
Ao contrário de outros processos e mudanças advindas da industrialização, que permitem percepção directa por parte do individuo e da sociedade - como foi o caso do aumento de direito de consumo ou de acessos a outros bens e serviços públicos - como afirma Costa “os riscos não são imediatamente visíveis, requerem a tradução cognitiva e a construção social da sua existência (idem)”. Isto é, o papel da ciência é lapidar na construção do nexo de casualidade, só o conhecimento académico especializado pode advertir para a relação directa entre a co-incineração de Souselas e a qualidade do ar em Coimbra, a forma como pode degradar a saúde dos cidadãos da cidade e do Distrito ou a exposição a redes de alta-tensão e a propensão para o risco de doenças cancerígenas.
A percepção dos riscos não é fruto da sua simples existência, mas parte de um processo de compreensão colectiva que se traduz para a vox populi e para o senso comum.  Para a decorrência deste processo o conhecimento especializado, como já fora referido, é essencial, caso contrário os riscos existem mas não são percepcionados, logo não entendidos como riscos pela sociedade, uma vez que o padrão cultural não os descodifica por si só.
Nesse sentido, Beck admite que “as possibilidades de reacção aos riscos sejam desigualmente distribuídas (…) mas não reafirmam as sociedades de classes, atingem a todos indiscriminadamente e representam, dessa forma, evidência incontestada da interdependência irredutível entre os diversos grupos e processos sociais (Costa, 2004)”.
Concluindo, o argumento central deste teórico social alemão na abordagem da sua proposta de “sociedade do risco” é a abrangência civilizacional e não classita – e clássica ao mesmo tempo – dos desastres advindos da acção humana, ou como refere Guivant “ o conceito de sociedade de risco se cruza directamente com o de globalização: os riscos são democráticos, afectando nações e classes sociais sem respeitar fronteiras de nenhum tipo. Os processos que passam a delinear-se a partir dessas transformações são ambíguos, coexistindo maior pobreza em massa, crescimento de nacionalismo, fundamentalismos ideológicos, crises económicas, possíveis guerras e catástrofes ecológicas e tecnológicas, e espaços no planeta onde há maior riqueza, tecnificação rápida e alta segurança no emprego (2001)”.
Com a referência supracitada entende-se que Beck com a sua proposta teórica não pretendeu só introduzir algo de novo na ciência social, mas também uma teoria global que ficou definida - em outros trabalhos mais tardios¹ - como sociedade global de risco. Com o principal propósito de ultrapassar o que define de velhas categorias, entende que não é possível continuar-se a olhar para a sociedade como tendo principal eixo identitário e de segurança baseado no trabalho, ao mesmo tempo que o desemprego não abranda o seu crescimento.
Estas propostas teóricas têm-lhe valido diversas críticas, Julia Guivant  - por exemplo – apresenta duas: 1) o evolucionismo/linearidade/ eurocentrismo na conceitualização e descrição da dinâmica da globalização e 2) a imprecisão acerca de como pode ser implementada a sua proposta de subpolítica ou de novas formas de fazer política para lidar com os riscos de graves consequências.
Outras têm sido apontadas, por exemplo Blowers (1997) sustenta que Beck vê a sociedade ocidental como homogénea, ignorando que os impactos ambientais são socialmente diferenciados, afectando principalmente os mais pobres. López e Alhama (1998) afirma que, se há conhecimento dos riscos, não há, então, descontrolo do complexo técnico, mas intenção política. Tratar-se-á assim, de um descontrolo voluntário, e não de risco. E se esse “risco” decorre da desinformação planeada, isso implica distribuição de forma desigual e mais particularmente aos pobres. Para Hajer (1995), a modernidade reflexiva caracterizada por Beck restringe-se equivocamente, à acção dos homens sobre o mundo, negligenciando-se naquilo que ela se aplica às próprias categorias de percepção da realidade. Wynne (1996) critica em Beck a consideração excessivamente realista da geração de uma nova consciência cultural decorrente de riscos reais universais que introduziriam o cepticismo público e a auto-refutação na modernidade e nas suas instituições (apud Acselrad et Mello).
Um outro estudo – conflito social e risco ambiental: o caso de um vazamento de óleo na Baía de Guanabara que merece especial atenção é da autoria de dois pesquisadores brasileiros, Henri Acselrad e Cecília de Mello, que passou por análise documental e de entrevistas, a fim de se reconstituir o histórico acidente em 16 cenas, “traçando o desenvolvimento da percepção e da articulação lógica entre a natureza da actividade produtiva e as condições ambientais tidas por indesejáveis verificadas ao redor da Refinaria Duque de Caxias.
O estudo concluiu que o riscos que contribuíram para o desastre foram derivados de: actualizações técnicas do processo; mudança de gerentes empresariais responsáveis pelas acções preventivas; ausência de licenciamento ambiental; flexibilização da legislação laboral; falta de democratização das informações técnicas; métodos impróprios de investigação de acidentes; falha do plano de emergência.
Ao contrário do que defende Beck, argumentam os autores do estudo que “os factos portadores da potência destrutiva das técnicas e a acção social em torno dos riscos há um complexo processo de luta simbólica que penetra as condições de produção, interpretação e difusão de informações.”
Por outro lado, vejamos as afirmações de Beck sobre os conflitos na sociedade risco onde enuncia que o conflito na sociedade de risco oporia capital a capital e trabalho a trabalho em torno à distribuição de perdas. Ao contrário da sociedade industrial, caracterizada pelo conflito entre capital e trabalho em torno à distribuição da riqueza, no sociedade de risco os trabalhadores não são mais apenas fonte de riqueza, mas também fonte de destruição e perigo (1994).  O autor entende que a divisão da exposição aos riscos cria uma nova estrutura de classe, criando uma forma de estruturalismo das técnicas.
Pegando nos argumentos enunciados podemos retornar à questão central da democraticidade dos riscos. Se entendermos os desastres como processos sociais de cunho relevante, podemos debater a vulnerabilidade social dos desastres e os níveis de exposição social a estes, o que em muito rebate a posição de Beck. Se entendermos que diferentes categorias ou composições sociais têm diferentes níveis de exposição a democraticidade perde-se, o próprio impacto de um desastre ou exposição a um risco passa a ser diferente. Como afirma Manuel Ribeiro “assim, não será de estranhar que, face a um mesmo perigo, diversos sejam os graus de exposição ao risco, isto é,  que se verifiquem vulnerabilidades diferenciadas dentro do próprio sistema, consoante a sua organização, distribuição e composição social (…) para além das condicionantes sociais que decorrem de domínios como o acesso à propriedade e ao espaço, às tecnologias e aos sistemas de segurança, de forma a avaliar os efeitos provenientes do risco de desastre, também, concomitantemente, se deverá entrar em linha de conta com as disponibilidades, socialmente hierarquizadas e distribuídas, dos recursos e das reservas económicas, profissionais, familiares e culturais, tanto para prevenir, como para recuperar dos efeitos do processo de ruptura provocado pelo desastre”.
Ao contrário do que afirma Beck, a posição ou situação de status -  tal como descreveu Max Weber se pode manifestar “com frequência, na apropriação monopolística de possibilidades de aquisição privilegiadas” – ou se quisermos a situação de classe, influenciam não só a exposição aos riscos mas também o tratamento que o indivíduo tem no momento de desastre ou pós-desastre, dada o seu acesso a determinados meios, que outros indivíduos de categorias sociais mais baixas não detém, ou a forma como os mecanismos de actuação, o próprio Estado e suas instituições, olham para os indivíduos de forma diferenciada, dependendo do seu papel social ou o cargo que ocupam, o que se acaba por traduzir para os próprios regulamentos e protocolos de actuação em casos de desastre. Neste sentido, a afirmação da igualdade perante os riscos não tem validade empírica.
Mesmo a própria exposição aos riscos, seja no consumo de produtos alimentares transgénicos ou não transgénicos, provoca uma diferenciação económica, uma vez que a liberdade de escolha é influenciada pelos rendimentos, o mesmo se pode aplicar na própria fisionomia das cidades, onde geralmente os bairros mais populares são os mais expostos a derrocadas e outros riscos naturais e tecnológicos.

Referências Bibliográficas


Ascelard, Henri e Mello, Cecília, Conflito social e risco ambiental: o caso de um vazamento de óleo na Baía de Guanabara.

Beck, Ulrich (1992), Risk Society Towards a New Modernity. London, Sage Publications
Beck, Ulrich (1994) Ecological Enlightment. New York, Humanities

Beck, Ulrich (1995) Ecological Politics in na Age of Risk. Cambridge, Polity

Braga, Cruz (2004), Teorias Sociológicas: Os fundadores e os clássicos (antologia de textos).Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian

Costa, Sérgio, Quase Crítica: Insuficiências da sociologia da modernização reflexiva. São Paulo, Tempo Social

Guivant, Julia (2001), A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre diagnóstico e a profecia. Rio de Janeiro, Estudos Sociedade e Agricultura 16.

Ribeiro, João (1995), Sociologia dos Desastres in Sociologia – Problemas e Práticas nº18. Lisboa, CIES/ISCTE

 

1.The reinvention of politics – Rethinking modernity in the global social order (1997); Qué es la globalização? Falacias del globalismo, respuestas a la globalización (1998); World risk society (1999) e The brave new world of work (2000).

 

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