SNS: a armadilha da sustentabilidade Versão para impressão
Domingo, 11 Dezembro 2011

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A direita e o seu governo dizem que a sua prioridade é salvar o SNS. E que a salvação do SNS exige que se garanta a sua sustentabilidade financeira. E que esta só é possível cortando no orçamento da saúde porque a economia do país não gera os recursos financeiros suficientes para permitir que o estado continue a “dar tudo a todos”. Em resumo, a direita tem uma solução para salvar o SNS: acabar com ele tal como hoje o conhecemos, um SNS financiado por todos de acordo com o rendimento de cada um e acessível a todos de acordo com as necessidades de saúde de cada um.

Em 2012, a despesa pública em saúde vai ter um corte de mil milhões de euros. Em nome da sustentabilidade, a direita corta no financiamento e, claro, na prestação de cuidados. Todos sabemos, incluindo a direita, que não é possível fazer mais – nem sequer o mesmo – com menos. Em 2012, os portugueses terão menos acesso, menos qualidade e menos prontidão nos serviços do SNS.

Em 2012, a regra das administrações – grande parte delas já nomeadas pelo actual governo com base em critérios de filiação partidária – será a regra do corte. Corte no número de profissionais, corte na composição das equipas, corte nas horas extraordinárias, corte nas remunerações, corte nos horários de funcionamento, corte nos serviços, corte nos transplantes, corte nas cirurgias das listas de espera, corte na comparticipação dos medicamentos.

Cortes e encerramentos. Serão fechadas as extensões dos centros de saúde e mesmo alguns centros de saúde, serviços de urgência, maternidades e até hospitais. O IDT será desmantelado e a rede de cuidados continuados continuará em “banho maria”.

Em 2012, só fogem à política do corte as PPP, as Misericórdias e as taxas moderadoras. As PPP recebem um prémio de mais 60 milhões de euros. As misericórdias são contempladas com a entrega de 15 hospitais. E as taxas moderadoras mais que duplicam de valor, obrigando os cidadãos a pagar o que já pagam com o dinheiro dos seus impostos.

Tudo para salvar o SNS, tudo para assegurar a sua sustentabilidade financeira…

A política de saúde foi capturada por este fundamentalismo financeiro que, na sua teorização actual, faz depender a sustentabilidade do SNS de uma política de redução do seu financiamento público e da redução do SNS aos mínimos.

A sustentabilidade é uma armadilha que, nos últimos anos, tem vindo crescentemente a condicionar a discussão sobre políticas de saúde e a justificar o subfinanciamento do SNS e a sua descaracterização e desfiguração, para benefício exclusivo dos vultuosos investimentos em saúde realizados nos últimos 10 anos pelos grandes grupos económicos e financeiros (BES, Mellos, CGD).

Hoje, a direita, quando fala de saúde, fala de contas e dívidas. Nenhum outro domínio do estado viu as suas contas tão esmiuçadas e analisadas, apesar do reconhecimento generalizado quanto à insuficiência da informação disponível e mesmo quanto à sua qualidade e rigor.

Do buraco nas contas da saúde todos os portugueses ouvem falar há muitos anos, no entanto, de outros buracos – aliás muito maiores – como o do BPN, o da Madeira ou das PPP, só muito recentemente tomaram conhecimento da sua existência e do seu impacto no desequilíbrio das contas do estado.

Tanta atenção às contas do SNS não traduz apenas uma genuína preocupação pela sustentabilidade do SNS. Pôr as contas no centro da atenção, no centro do debate, no centro da política de saúde faz parte do programa dos que querem mudar o actual modelo e volume de financiamento e o paradigma do serviço público de saúde. Antes ou depois da crise financeira, os argumentos repetem-se, o que pensam e reclamam é o mesmo, antes ou depois da crise: menos despesa pública em saúde, menos SNS.

Hoje, a pressão da dívida soberana e da crise do euro tornou o SNS refém deste fundamentalismo financeiro. É com naturalidade que o ministro da saúde assume que só podemos ter os cuidados de saúde que o país pode pagar e a economia sustentar.

A esquerda não pode aceitar esta lógica, cujas consequências são conhecidas porque inevitáveis: cortar no financiamento, reduzir o acesso e a prestação, tratar alguns e deixar outros por tratar.

O que se exige dos responsáveis, dos governantes é exactamente o contrário: é dotar o SNS dos recursos necessários e suficientes para que ele possa responder às necessidades e à procura, não ignorando que ambas evoluem em função das mudanças sociais, demográficas, epidemiológicas e comportamentais.

O desafio da política de saúde não é adaptar as necessidades ao orçamento mas sim adequar o orçamento às necessidades e ter a capacidade de gerir o orçamento e organizar a produção de cuidados de saúde de forma eficaz e eficiente.

O desafio está na procura da eficácia, da eficiência, da melhor organização dos serviços de saúde, na mobilização e motivação dos profissionais. Não é isso que conduz hoje a política de saúde, completamente subjugada aos resultados ou ganhos financeiros e desinteressada dos resultados ou ganhos em saúde.

A questão da sustentabilidade é uma armadilha por uma outra razão. Quer do lado da despesa quer do lado da receita, os principais factores que influenciam as contas do SNS e nos aproximam ou afastam do seu equilíbrio, se quiserem da sua sustentabilidade para usar o conceito da moda dos dias que correm, são exteriores ao próprio SNS e em substância não dependem da sua organização nem mesmo da sua gestão. São decisões políticas do governo.

A receita destinada à saúde decorre de opções políticas dos governantes sobre a distribuição do bolo orçamental. O nível de financiamento atribuído ao SNS e à saúde é uma decisão, pode ser maior ou menor, em função das escolhas governamentais. São escolhas, não há qualquer determinismo na dotação orçamental do MS. A direita corta nos serviços públicos, corta nas funções sociais do estado, corta no SNS.

E podemos, ainda, falar de outras escolhas que comprometem igualmente o financiamento do SNS: recapitalizar a banca e não o SNS é uma escolha política do governo da direita, uma escolha com reflexos na política de saúde. A opção podia ser outra: recapitalizar o SNS e não a banca.

Por outro lado, parte importante da despesa do SNS não é regulável pelo próprio SNS, decorre de factores que ele não pode influenciar. Um exemplo, a despesa em doenças oncológicas pode variar com o diagnóstico precoce. Mas decisão de fazer mais ou menos rastreios é exterior ao SNS. E o mesmo pode dizer-se sobre a educação para a saúde, a educação sexual, o planeamento familiar, a prevenção da sinistralidade nas estradas ou dos acidentes de trabalho. Tudo isto tem um enorme impacto no SNS, na sua despesa, mas o SNS não risca nada nas respectivas políticas. E quem risca – o governo, o MS e outros ministérios, não fazem o suficiente para impor essas políticas.

Invoca-se a dívida do SNS para sustentar a tese que o SNS precisa de uma cura de emagrecimento, não se observando sequer que a dívida é a outra face do sub financiamento a que o SNS tem sido sistematicamente sujeito nos últimos anos. A dívida não condena o SNS a um atestado de insolvência, nem sequer é prova de má gestão ou desperdício. Dívida requer melhor gestão e menos desperdício mas também mais financiamento.

Em nome da sustentabilidade – que verdadeiramente lhes é indiferente – os teóricos da tese do desperdício como regra no SNS não pretendem outra coisa que não seja reduzir o financiamento público do SNS, indiferentes às consequências negativas sobre a sua capacidade assistencial e prestação de cuidados.

Menos financiamento significa escolher o que o SNS deixará de fazer e escolher também quem ficará excluído dos serviços públicos de saúde. A terapêutica pesa na despesa, então corta-se. Os serviços não podem atender todos, então, ficam alguns de fora.

Mas com que critério? E quem o define? Que doentes deixarão de ser tratados?

A sustentabilidade é uma armadilha. O doente passará a ser visto como um cidadão que vive acima das suas e das nossas possibilidades, logo a sociedade e o estado podem aliviar-se da sua responsabilidade em garantir a todos o direito à saúde.

A redução da despesa pública em saúde determinada a metro e a olho e para satisfazer as exigências da troika, não garante a sustentabilidade do SNS, quanto muito permitirá a sobrevivência de um SNS amputado e residual. Um pobre SNS será um SNS para pobres.

É uma ilusão pensar que a redução da despesa e do investimento público em saúde não limita o acesso, a qualidade, a eficácia e a eficiência da assistência prestada aos cidadãos.

As consequências do sub financiamento dos últimos anos – menos cuidados, mais dívida – constituem prova irrefutável. Nos próximos anos, o resultado não será diferente: a dívida continuará a crescer e a prestação pública de cuidados a diminuir.

A sustentabilidade do SNS é compatível com o seu carácter geral e universal e com o seu desenvolvimento, modernização e humanização, desde que a política de saúde se concentre em dois grandes desafios:

- eliminar os desperdícios provocados pela promiscuidade de interesses entre o SNS e os grupos privados

- valorizar os recursos humanos que são o principal instrumento para a qualidade dos cuidados prestados e o funcionamento dos serviços.

Bem podem os defensores da redução da despesa pública proclamarem que o fazem para salvar o SNS. Toda a evidência revela o contrário: o SNS, como hoje o conhecemos, ficará sem salvação. Os privados agradecem – sempre viveram das “falhas” do SNS: o mau funcionamento do SNS é o melhor convite para os doentes escolherem os hospitais privados.

É este plano que a direita pôs em marcha, sob a batuta do ministro Paulo Macedo.

João Semedo

 

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