Breve lição a João Duque Versão para impressão
Domingo, 11 Dezembro 2011

duque

Sumário – A semântica e o simbolismo

Há ensinamentos elementares que o doutíssimo professor João Duque parece desconhecer. Em particular, aqueles que se prendem com o alcance mais imediato do seu discurso. Isto não seria particularmente preocupante para João Duque, se nos últimos tempos não tivesse pulado da cátedra da universidade para a cátedra das cadeias de televisão. Mas, uma vez aí chegado, aquelas sombrias figuras governamentais que o projectaram para as luzes da ribalta deveriam ter pensado em instruir o seu tecnocratazinho em estratégia comunicativa, salvaguardando-se a eles de ficar associados aos desvarios de discurso do professor e a nós de escutarmos declarações ofensivas ao nosso passado e memória colectivos. Pode custar a crer, mas é verdade. Há dias, na qualidade de presidente do grupo de trabalho sobre o serviço público de comunicação social, vulgo Comissão Relvas – para os mais corrosivos – João Duque sentenciou a sua exposição com a frase: “−A bem da Nação!”. A meu ver, este gesto foi totalmente hediondo. Passo a explicar a razão da minha indignação ao digníssimo professor.

Como deveria ser do seu conhecimento, há palavras ou expressões cujo significado é muito mais vasto do que a sua dimensão literal. Em rigor, a História encarregou-se de, em vários momentos, advertida ou inadvertidamente, de encarcerá-las em fragmentos do tempo, inapagavelmente marcados por um acontecimento de vulto, uma citação célebre ou um simples acaso do quotidiano que, graças aos insondáveis desígnios dos cosmos, merece ainda a nossa pronta associação vocabular.

Se não, vejamos. Se nos referirmos à terceira via, dificilmente estaremos a falar de uma Auto-Estrada. Isto porque por este nome foi eternizada a sinuosa, atribulada e pouco consensual tentativa de fundar uma alternativa política ao curso que o pensamento socialista estava a tomar e, convenhamos, nem mesmo o mais ortodoxo e dedicado dos engenheiros civis teria a ousadia de vislumbrar um quilómetro de macadame nesta expressão. Assim como ninguém espera que o aforismo “O trabalho liberta!” se adeqúe, na perfeição, aos trabalhos de olaria do Senhor António, pensionista que se dedicou à nobre arte de trabalhar o barro, para se libertar das amarguras da solidão. Não sei quanto a ele, mas eu não levaria muito a bem que o meu hobby fosse conotado com a máxima que coroava os portões do campo de concentração nazi, em Auschwitz. De igual forma, dando um derradeiro exemplo, se, como autarca, incluísse no discurso de inauguração de um novo jardim a citação “Que cem flores floresçam!”, seria muito improvável que fosse tomado como um edil especialmente auspicioso em relação à fertilidade do solo. Pelo contrário, creio que iriam surgir uns risinhos abafados, vindos dos elementos da direita social-democrata, que na sua maioria, justiça lhes seja feita, guardam afectuosamente na sua memória os ensinamentos do Grande Timoneiro, estudados noutras núpcias.

Em suma, o que procuro advogar é que há expressões, que por múltiplas circunstâncias, viram-se plenamente espoliadas do seu sentido intrínseco, encontrando-se hoje irremediavelmente consignadas à dimensão associativa do seu significado. Bem sei que o professor João Duque é ideologicamente avesso a qualquer tipo de expropriação e, lá onde quer que esteja, está já a estrebuchar – e sabemos que há até a possibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, tamanha é a sua omnipresença nos órgãos de comunicação.  Mas, meu caro professor João Duque, felizmente há realidades que nem mesmo o mais desleal dos grupos de trabalho, composto pelos mais afamados dos intelectuais a soldo, pode distorcer ou alterar. Uma vez assimiladas pela nossa matriz cultural colectiva, as suas próprias palavras deixam-no do ser. O significado dos símbolos não fica ao critério de quem os evoca. O seu significado, pelo contrário, é universal e independente de quem o profere. Soubesse João Duque disto e ficaria abespinhado. Como é que poderiam os símbolos não respeitar a sua individualidade?! O seu discurso era propriedade privada, logo tinha de ser respeitado, ora essa! E começaria logo a congeminar a forma de legitimar a privatização da semântica. Diria ele que a semântica era uma área a controlar, porque, se hoje, expropriava a acepção de uma expressão, amanhã irromperia pelo Alentejo adentro, a gritar “Fora os latifundiários!”. Este despautério advinha, claro, de ser pública, pelo que semântica teria de ser privatizada! – Felizmente para nós, professor, por maior que seja a sua convicção e impetuosidade privatizadora, ainda não é possível vender a língua portuguesa em mercado de acções.

Mas, pensando bem, talvez não soubesse. Porventura estaria mesmo convicto de que “A bem da nação!” meramente se referia ao interesse nacional. Porventura desconheceria que “A bem da nação!” servia de término a todos os comunicados oficiais durante o Estado Novo, bem como porventura, ainda, desconheceria que, ao recorrer a um instrumento discursivo inconfundivelmente associado a um regime, está implicitamente a declarar-lhe apoio. Estaria a enaltecer um regime repressivo, totalitário, avesso à mais elementar das liberdades individuais, que respondia às opiniões contrárias com o encarceramento, tortura e assassinato dos opositores, responsável por uma guerra colonial fratricida, na qual morreram cerca de 8000 jovens soldados portugueses e responsável por políticas económicas que, em nome da conservação dos valores tradicionais, mantiveram Portugal numa situação de extrema penúria, em comparação com os seus pares europeus. Certo é que muito mais de negativo haveria por dizer, mas fico-me por aqui. É seguro que, se João Duque soubesse disto, não teria feito aquela declaração.

Mas será que não sabia? Será que a ingenuidade e desconhecimento de João Duque são tão profundos? Claro que não. Muito embora discorde das suas posições, não o tomo nem por ignorante, nem por imponderado. De facto, ele não disse aquilo involuntariamente, ele pensa-o! Simplesmente, como não tem o traquejo retórico de um verdadeiro político, não faz uma avaliação correcta do impacto das suas declarações. Aliás, todo este caso se resume a isso: um tecnocrata com défice de eficiência comunicativa. Mas o cerne do problema está longe se ser o caso em si. Lamentavelmente, este devaneio particular enquadra-se numa vaga de muitos outros, igualmente graves e reprováveis, que num ápice nos inundaram as televisões e a mente. Hoje, olhar a caixinha mágica é escutar os comentadores televisivos – mais uma das frentes impregnada de intelectuais a soldo – do alto do púlpito da pretensa independência – dizendo que as greves são um luxo dos privilegiados e ociosos; que os mercados financeiros, sustentados na lei do mercado, têm o direito de especular e cobrar juros agiotas; que as manifestações e os debates de ideias devem ser desencorajados, porque dão uma má imagem aos mercados e que, num país com um dos salários mínimos mais baixos da Europa, os trabalhadores vivem acima das suas possibilidades. Para além disto, de quando em vez, vem um senhor com um ar muito sério, muito sóbrio, muito bem intencionado, que nada tem que ver com política – o ilustre senhor só se preocupa com os superiores interesses da nação – falar-nos num tom muito monocórdico, pois que a ciência económica não se presta a espectáculos políticos. O tempo, todos o sabemos, e disso somos relembrados pelo inexcedível professor, é o de reequilibrar as finanças públicas e terminar com os tumultos, excessos e vícios da I República… Perdão, Perdão! Do pós-25 de Abril.

Fim da lição.

Em jeito de conclusão, fica o seguinte apontamento: se não travarmos o rumo destas atitudes e políticas, a próxima “lição”de João Duque aos portugueses terá por título: As virtudes da “nova” constituição de 1933. Está nas mãos de todos nós impedir que tal aconteça!

Diogo Martins

 

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