Cultura e culturas no Brasil: há algo de novo Versão para impressão
Quarta, 19 Outubro 2011

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Um câncer privou o Brasil do crítico de cinema e criador da Mostra de São Paulo (uma das mais importantes do País), Leon Cakoff. Aos 63 anos, não verá sua criação, que transformou a capital paulista e determinou uma cultura cinéfila mundial, completar 35 anos em 2012.

Com Cakoff, a Mostra nasceu com a exibição de 16 longas e 7 curtas em um local apenas – no ano passado foram mais de 400 produções do mundo todo, em 22 espaços culturais diversos.

Seu sonho tem início quando, em 1971, junta US$ 300 e vai à Cannes, na França, e se torna o eixo de um intercâmbio que culmina em projetos como o filme “Bem-Vindo a São Paulo” (2004), onde convidou fazedores de cultura como o cantor Caetano Veloso, o iraniano Abbas Kiarostami e o malaio Tsai Ming-liang a produzirem curtas sobre a maior cidade brasileira.

Cakoff enfrentou e persistiu com o cinema mesmo em momentos como em 1992, quando o governo federal de Fernando Collor de Mello extinguiu a Embrafilmes. Nesse momento, o cinema brasileiro literalmente parou, sobretudo pelo desastre governamental em políticas culturais; naquele ano, o destaque da Mostra foi o até então desconhecido Quentin Tarantino com seu Reservoir Dogs, cuja tradução no Brasil manteve nossa tradição daqui de imbecilizar os nomes das películas: ficou Cães de Aluguel. Não me pergunte por que.

Deixo Cakoff por enquanto para lhes apresentar outro personagem, que naquele 92 integrava a Câmara Municipal (nosso Poder Legislativo, existente todas as mais de 5.500 cidades brasileiras) de uma cidade de 50 mil habitantes, no interior do estado de São Paulo – o centro financeiro do País.

A considerada pequena Monte Alto contava com Gilberto Morgado, egresso dos momentos de gênese do Partido dos Trabalhadores brasileiro, o mesmo PT que, a despeito dos avanços significativos na economia e cultura, em nome do que chamam “governabilidade” - e o que eu chamo mergulhar na lama para fazer emergir um lírio – fez diversos acordos com nossa gigantesca (em tamanho e corrupção) Câmara Federal.

Se atingiram seus fins, justificaram-se seus meios? É uma das questões mais incômodas à esquerda brasileira que está no poder, com a oposição de outras agremiações esquerdistas mais recentes (como PSTU e PSOL; nosso PC do B, o Partido Comunista do Brasil, se rendeu ao aparelhamento estatal e a corrupção, como no caso do Ministério dos Esportes e seus repasses de recursos).

Mas Gilberto Morgado, a segunda personalidade de que trato, professor e cientista político, pensava um pouco diferente. Em três mandatos como vereador, sendo um dos representantes de nosso Poder Legislativo, combateu a política personalista e corrupta típica das administrações municipais.

O governo municipal, até então neoliberal, convocava seus funcionários assalariados para comparecer às Sessões da Câmara e vaiar “Gilbertão”, como é conhecido por estes lados. Mas ele nunca se esquivou de seus ideais e, em 2004, resolveu disputar a Prefeitura, buscando ocupar o posto máximo do Poder Executivo de Monte Alto.

Naquela eleição, houve o primeiro debate político entre os candidatos a prefeito na história do município. Transmitido ao vivo por uma emissora de rádio, teve audiência expressiva. Cinco candidatos pleiteavam a Prefeitura. Em 4º nas pesquisas, Gilbertão teve a chance de propagar aos quatro cantos seus conhecimentos, vivências e ideais. A 15 dias da eleição.

O curto prazo para o pleito, porém, não impediu a grande virada: se tornou prefeito da cidade. Formou uma equipe jovem, sem lotear secretarias e diretorias com outros partidos; cancelou contratos de serviços estruturais (os que envolvem mais recursos e propinas), não trocou favores com os vereadores que, por sua vez, compraram horários em meios de comunicação para tentar desestruturar o governo.

Em um contexto de pressão política, Gilbertão trabalhava. Rebatia incansavelmente os senhores da velhacaria política e atualizava o Código Tributário Municipal, onde quem possuía residências maiores passou a pagar mais, enquanto as casas menores tiveram o imposto predial suspenso – 15% das propriedades, de famílias mais pobres, foram isentas dessa taxação.

Formou mais de 30 associações de moradores. Criou a Casa dos Direitos, onde instaurou o Orçamento Participativo, modelo brasileiro exportado para todo o mundo mas ignorado pela política do estado e dos municípios paulistas e investiu pesado na formação cultural, a começar pelo combate à cultura da corrupção.

Foi o primeiro que mostrou à população (tendo alta capacidade comunicativa) que a tradição de se levar 5% da empreiteira de uma obra não poderia ser considerado algo comum. Investigou políticos, em processos que geraram prisões preventivas de um empresário e um funcionário público. Outras investigações estão à cargo da Justiça ainda hoje.

Cinéfilo como Cakoff, Gilbertão re-editou a Semana do Cinema que havia feito em Monte Alto, no ano de 1982; agora como um Mês do Cinema, com mais de 100 filmes exibidos em duas salas e nas praças públicas. Nessa ação cultural, não precisou pensar duas vezes antes de selecionar títulos diversos: desde nosso caipira local Mazzaropi (o homem rural, raiz cultural das cidades do interior doo estado de São Paulo), ao cinema revolucionário soviético de Dziga Vertov.

Gilbertão defendia que quaisquer ações em nosso quintal (nossa cidade) teriam consequências diretas e indiretas em toda sociedade brasileira. Foi agindo dessa forma que, em 9 de junho de 2006, em viagem à capital paulista para assinar um convênio, foi atirado de um prédio em circunstâncias até hoje não esclarecidas.

Vendo o governo municipal descambar nas mãos do vice-prefeito Maurício Piovezan, hoje alvo de muitas investigações de improbidade e corrupção (fora o fato de deixar um rombo de 10 milhões de reais, algo em torno de US$ 5,8 milhões em um orçamento de US$ 32 milhões), uma parte desse grupo de jovens unidos por Gilbertão trabalha pela expulsão de Piovezan do PT; o que acontece, na esfera estadual do partido, com quase todos votos favoráveis – apenas um se absteve de votar. Ninguém a favor de Piovezan.

Esse mesmo grupo que, ainda com Gilbertão vivo, havia criado em 2006 uma associação regional de cultura – a AGCIP, que hoje trabalha com projetos culturais em 40 municípios, se volta à gestão cultural, tendo a práxis da administração pública, mas agora partindo da sociedade civil.

Se, por um lado, esses jovens deixam suas profissões (jornalistas, advogados e professores “pagando o preço” da militância) e lutam, por cinco anos, para a promoção cultural paralela à massificação imposta pela indústria cultural, por outro recebem apoio de gestores culturais das cidades vizinhas, bem como de parlamentares do estado e da federação, quebrando um paradigma entre artistas e produtores culturais do interior de São Paulo de que “todo político é corrupto”.

Enfim, o intercâmbio de artistas, produtores, informações e ações formação de novos agentes culturais enriquece o estado onde a pressão do Capital é a maior do Brasil, forçando o consumo de uma cultura rala e insossa, tendendo à anti-reflexão e formando cidadãos como gados do Capital. E culmina com a criação do Consórcio Intermunicipal Culturando, o primeiro consórcio público do Brasil específico para ações culturais.

Ao solicitar projetos ao governo federal em nome dos 20 municípios (pequenos e médios) consorciados, a força é maior – tanto que, em ações ligadas ao fomento à leitura, formação de leitores, cine-clubes e estruturação das formas culturais enraizadas em nosso regionalismo, conseguimos 9,17 milhões de reais (US$ 5,27 mi), que podem ser investidos em sua totalidade caso haja projetos viáveis e de relevância cultural desenvolvidos pelas administrações públicas e ONGs (Organizações Não-Governamentais).

É preciso relevar que o Governo Federal semeou avanços nos últimos oito anos, especialmente durante os trabalhos do cantor e compositor Gilberto Gil enquanto Ministro da Cultura. Aos poucos, as políticas públicas vêm criando mecanismos de apoio e autonomia aos gestores culturais, para que possam dar subsídio aos saberes e fazeres culturais de seus quintais, contrariando a politica neoliberal de fomento somente às Belas Artes, em eventos autossustentáveis.

Esse é um reconhecimento ministerial de que é impossível, para qualquer governo, mapear e fomentar a brutal (enquanto de singularidades) diversidade cultural brasileira. Aos poucos, criam-se editais específicos para culturas regionais (como a caiçara dos litorais e as caipiras dos interiores de estado), com acesso não somente a ONGs, mas também a pessoas físicas, além do trabalho de convencimento ao empresariado da importância das Leis de Incentivo Fiscal. Essa questão específica é controversa e passa por debates reformistas, uma vez que gerou uma profissionalização na redação de projetos dessa natureza que privilegia quem possui recursos para “comprar” assessorias e ter sua ação aprovada.

Se o governo do PT avança nas políticas culturais e em programas sociais importantes, além de fincar posições na política externa (sejam elas quais forem, mas menos subservientes), não conseguiu abandonar tristes tradições políticas como a corrupção (onde o governo Dilma, ao iniciar uma limpeza nos ministérios, parece sinalizar positivamente nesse campo).

Vale relevar que as gestões Lula e Dilma, ao reverterem o ciclo de privatizações, evitaram fluxo de recursos para a grande imprensa brasileira, ávida pelos milhões de empresas que, uma vez assumindo serviços públicos, passam a investir com menos responsabilidade e menos limites em marketing nas grandes mídias. Daí os ataques raivosos ao governo e o “esquecimento” de divulgar importantes avanços, como na política cultural.

Neste contexto de diversidade, desafios e de ditadura cultural estimulada pelo capital, fechando as portas para a cultura enraizada e privilegiando produtos culturais construídos em linha de montagem, com a consistência ideológica de um pacote de sabão em pó, nossa associação cultural, a AGCIP, ao criar o primeiro consórcio público de cultura no Brasil, une iniciativa pública e sociedade civil em torno da valorização das culturas que nos identificam por aqui, com o mesmo ânimo de compartilhar nossas vivências pioneiras com outras regiões e cidades maiores do Brasil e, quiçá, futuramente ensinar e aprender com a persistência e coerência de Gilbertões e Cakoffs espalhados por toda a Terra.

É mais uma força nessa corrente perpetrada pela sociedade civil, que assume o protagonismo das ações culturais, esportivas e, gradativamente, ambientais, ao invés de lamentar a inépcia governamental.

Neste dia 15 de outubro, quando digito esses mal ajambrados caracteres, que celebramos (há o que celebrar?) o Dia dos (alquebrados) Professores, raça tratada como “vira-latas” pelos governos, em especial o neoliberal do estado de SP, assistimos ao dia de ocupação mundial em Londres, Ottawa, Madrid, Estocolmo, Roma e em outras cidades que aderiram ao movimento de ocupação contra o sistema financeiro.

Nós, aqui em nosso recanto, com nossas iniciativas culturais, mantemos viva a chama de nossos tantos professores (dos quais dois aqui venerados) e deixamos de nos sentir isolados quando vemos que, através de movimentos, processos e mídias sociais, mais gente se posiciona contra o predomínio dos umbigos, os desmandos de poder e o cerceamento, todos promovidos pela simples acumulação de capital e manutenção de status sociais inúteis para o justo e pleno desenvolvimento da coletividade.

Luiz Felipe Nunes

é jornalista de formação e diretor da AGCIP

 

 

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