Os tumultos de Londres, a violência e os marxistas Versão para impressão
Domingo, 02 Outubro 2011

ilustrao de artigo de victor

“Os diversos momentos da acumulação original (…) utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e organizada, para acelerar, como em estufa, o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e para encurtar a transição. A violência é a parteira de toda a velha sociedade grávida de uma nova. Ela própria é uma potência económica”. Marx, O Capital, 24º Capítulo – a chamada acumulação original. (1)

“O que fazer com os desempregados? Mas enquanto se avoluma, a cada ano, o número de desempregados, não há ninguém para responder a essa pergunta; e quase podemos calcular o momento em que os desempregados vão perder a paciência e tomar o destino em suas próprias mãos”. Engels, no prefácio da edição inglesa de O Capital de Marx.

 

Cheguei a 4 de Agosto para as minhas primeiras férias em Londres. Os planos eram os do costume, visitar lugares históricos, conhecer a cidade e as pessoas, compreender um pouco melhor um dos lugares decisórios da história da Europa e do Mundo…

A partir do dia 6 um novo facto tinha-se imposto: tumultos em larga escala em Londres faziam directos permanentes na Sky News, CNN e BBC. A desordem tinha tomado conta de muitas ruas e fazia o espanto de todos os que no café, local de encontro e jantar de emigrantes portugueses e espanhóis, olhavam as tvs em permanente directo.

A primeira impressão que fazia transparecer era a ausência de polícia e bombeiros, por aparentemente haver poucos polícias, por haver muitos incêndios sem combate; o próprio governo demorou a reagir ficando até a impressão de que coisa lhe corria de feição e serviria de argumento a novas medidas mais repressivas. O que aconteceu, como adiante veremos.

As imagens deverão ter corrido mundo. Escolhidas a dedo? Editadas a gosto? Comentadas a jeito dos regimes?

Estes tumultos propiciaram as reacções mais diversas. Antes de dispararmos respostas prontas vale a pena tentar mais algumas perguntas, mesmo a que a elas tenhamos dificuldade em responder: Como começou? Qual a composição social das pessoas envolvidas? Quem eram os líderes? Onde estava a fonte de alimentação da ira e da tensão que se gerou? De que modo concreto se desenrolaram os tumultos no terreno? A quem se dirigiu a violência? Que antecedentes históricos? Que reivindicações exponham os tumultuosos? Que aliados se lhes propiciaram? Quem se lhe opôs? Que resultados ficam?

O “começo”. Em síntese tudo terá começado com o assassinato de Mark Duggan pela polícia. O assassinato foi justificado como resposta a tiros de um traficante de drogas a uma acção policial. Numa primeira versão terão acertado em um polícia que evitou a morte pelo facto da bala se ter alojado no rádio. A polícia terá depois tratado indecentemente a família da vítima tendo-se convocado um protesto pacífico em Tottenham para dia 6. Os incidentes terão começado depois desse protesto. A versão policial tornou-se duvidosa nos dias seguintes, afinal parece que a bala no rádio era da própria polícia. De qualquer das formas a polícia inglesa tem fama de atirar a matar e isso foi-me confirmado por vários emigrantes, recordemo-nos do assassinato do emigrante brasileiro que fugia à polícia porque se encontrava ilegal.

Sem entrar nos imensos detalhes e interessantes artigos de opinião, que poderão ser lidos em variados lugares, interessa tentar ir aos factos concretos – porque a violência precisa de condições prévias para manifestar-se.

 

1. Um cheirinho de história.

A sociedade inglesa não é tão pacífica e equilibrada quanto o markting a vende embrulhada em historietas cor-de-rosa pró-monárquicas. Apesar de seu comportamento imperial e do seu extenso grau de exploração territorial e consequentemente na globalização [o colonialista e burguês reaccionário inglês Cecil Rhodes ficou famoso por dizer em 1895: “A expansão é tudo. Se eu pudesse anexaria os planetas”] as condições de vida dos trabalhadores britânicos foram assim relatadas por Engels no seu livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, publicado em 1845:

“Regra geral, as casas dos trabalhadores estão mal implantadas, mal construídas, mal conservadas, mal arejadas, húmidas e insalubres; nelas, os habitantes estão confinados a um espaço mínimo e, na maior parte dos casos, num cómodo dorme pelo menos uma família inteira. A disposição interior das casas é miserável; chega-se num certo grau à ausência total dos móveis indispensáveis. As roupas dos trabalhadores também são, regra geral, medíocres e estão frequentemente esfarrapadas. A comida é geralmente má, muitas vezes imprópria para consumo, em muitos casos, pelo menos em certos períodos, insuficiente e, no extremo, há pessoas que morrem de fome (…) No melhor dos casos, uma existência momentânea suportável: para um trabalho duro, bom alojamento e comida menos má (do ponto de vista do operário, evidentemente, tudo isto é bom e suportável); no pior dos casos uma miséria cruel pode ir até a ausência do fogo e casa e à morte pela fome; mas a média é muito mais próxima do pior do que do melhor dos casos.”

Atente-se: a média de vida dos trabalhadores era de 18 anos! Não era de admirar, retomemos Engels:

“As crianças são obrigadas a fornecer um trabalho de uma duração irracional e cruel e que até os adultos têm de fazer um trabalho que ultrapassa as forças de um ser humano. As consequências são que muitos morrem prematuramente outros sofrem toda a vida os efeitos de uma constituição deficiente e que, psicologicamente falando, os receios de ver nascer gerações enfraquecidas pelas taras dos sobreviventes parecem muito fundamentados”.

De então para cá são largas as histórias de tumultos, por vezes com capa e manipulação racial, mas que mostram essencialmente a situação de pobreza de largos sectores das massas.

 

2. A crise e a privação do consumo.

Vejamos apenas alguns exemplos do momento político e económico actual: a Inglaterra vive a pior crise económica dos últimos 50 anos, segundo o próprio presidente da câmara de Londres, Boris Johnson, do Partido Conservador; a taxa de juro está a 0,5% - o juro mais baixo de sempre - enquanto a inflação se aproxima dos 5%, a dívida pública está nos 70% do PIB e o défice chegou aos 12%. O governo de Gordon Brown socorreu várias vezes a banca injectando verbas superiores a 60 mil milhões de euros, nomeadamente o Royal Bank of Scotland, o Barclays ou o HSBC que agora anunciou 30 mil despedimentos. Em 2009, o PIB britânico caiu 4,9% e no último trimestre de 2010 caiu 0,7%. Dados do próprio Instituto de Estudos Fiscais dizem que o Reino Unido teve nos últimos 12 meses a pior queda do nível de vida desde o pós-guerra.

Entre outras medidas, o actual governo anulou 24 projectos avaliados em 13 mil milhões de euros e fez drásticos cortes nos serviços públicos que trouxeram às ruas as maiores manifestações das últimas décadas, em particular milhares de estudantes…

É a consequência da desindustrialização, das privatizações em massa, da destruição em quantidade e qualidade dos serviços públicos, do Estado ao serviço da finança, da retirada de apoios sociais vitais à sobrevivência das massas pobres, da imposição de um futuro sem esperança.

Enquanto isso as receitas dos mais ricos cresceram 273 vezes mais que as dos mais pobres. A monarquia, sendo ferramenta de alienação de massas e legitimação de poderes político/económicos anti-democráticos e pró-feudais como os dos Lordes, é ainda o espelho da extrema desigualdade. Esta é bem patente a quem visitar o Castelo de Windsor e a Torre de Londres; aí se encontra uma coroa – usada uma única vez na Índia -, há precisamente 100 anos, que já nesse tempo custou 60 mil libras, ou uma outra coroa que tem o maior diamante do mundo…

Nos bairros mais pobres o desemprego dos jovens chega a atingir mais de 70%, Tottenham, é a zona com o maior nível de desemprego de Londres e uma das dez mais pobres do Reino Unido. Com 75% de cortes no orçamento do bairro, desapareceram os clubes juvenis, essenciais durante o verão e as férias escolares.

A pátria no neoliberalismo e da terceira via prova a catástrofe social para onde nos encaminham estas ideologias. Com elas veio a naturalização e a individualização da pobreza, da exclusão social e da desigualdade. O indivíduo pobre ou desempregado é-o pelo seu fracasso, pela sua ausência de mérito, pela sua incapacidade, pela sua preguiça. O “preguiçoso vive à custa dos subsídios do Estado, não quer procurar activamente trabalho é o pária da sociedade que a classe média tem que sustentar com os seus impostos”. O desempregado é-o pelo seu comportamento porque se recusa a oferecer a venda do seu trabalho abaixo de um salário mínimo(2); o facto é que esta ideologia ganha massas e foi comum ouvir de vários compatriotas que recebiam 800 libras por trabalharem 10 horas por dia: “há trabalho, os ingleses é que não o querem pois vivem dos subsídios do Estado”. Logicamente, a naturalização e individualização da pobreza leva à água ao moinho da burguesia: o apagamento do papel do Estado e a negação da exploração de classe.

Os salários baixos, a precariedade generalizada e o desemprego obrigaram as massas a recorrer ao crédito, lá como cá o endividamento é brutal e condiciona a vida das pessoas à banca. Há aqui um outro argumento burguês com apoio de massas: O argumento de que “as pessoas fizeram excesso de consumo, gastaram acima das suas possibilidades”(3) esconde a diminuição geral de salários, a usurpação pela burguesia dos nossos salários indirectos e a única saída que a burguesia tinha para manter o consumo: implementar o crédito em larga escala. É que não pode haver produção sem consumo. É a própria burguesia a dinamizar o consumo elevando a publicidade e o markting à “categoria de ciência”, “deusificando” a mercadoria, criando e implementando sempre novas necessidades, diminuindo o tempo de vida útil dos bens e acrescentando-lhe novas inovações que o tornam “imprescindível” face ao anterior bem do mesmo tipo; cada novo bem de consumo aparece como sendo o ideal para aquela pessoa (sujeito), como se fosse individualizado. A propósito vale a pena recorrer de novo a Marx, no Grundisse:

“1) A produção fornece ao consumo a sua matéria, o seu objecto. Consumo sem objecto não é consumo; neste sentido, a produção cria, produz o consumo.

2) Porém, a produção não fornece apenas um objecto de consumo; dá-lhe também o seu carácter específico e determinado, dá-lhe o toque final - tal como o consumo dá ao produto o toque final que converte uma vez por todas em produto. Em suma, o objecto não é um objecto em geral, mas sim, um objecto bem determinado e que tem de ser consumido de uma maneira determinada, a qual, por sua vez, tem que ser mediada pela própria produção. A fome é a fome, mas a fome que é saciada com carne cozida e consumida com faca e garfo é diferente da fome do que devora carne crua e a come com a mão, com unhas e dentes. Por conseguinte, o que a produção produz objectiva e subjectivamente não é só o objecto do consumo; é também o modo de consumo. A produção cria, pois, o consumidor.

3) A produção proporciona não só um objecto material à necessidade, mas também uma necessidade ao objecto material. Quando o consumo emerge do seu primitivo carácter natural, imediato e tosco (…) passa a ser mediado como impulso pelo objecto: a necessidade que o consumo sente deste último é criada pela percepção do objecto. (…) Deste modo, a produção não cria só um objecto para o sujeito; cria também um sujeito para o objecto”.

 

3. Razões materiais e acções sem a razão.

“Nos distúrbios houve de tudo. A presença de bandos de jovens e o roubo meramente oportunista estiveram tão na ordem do dia como o uso de torpedos via celular para coordenar os ataques em lojas e bairros. Em uma sociedade onde o dinheiro se converteu em valor absoluto, a identidade parece definir-se, para muita gente, pela posse de ténis de marca ou do modelo de celular mais recente, ao qual essas pessoas não têm acesso porque vivem mergulhados na pobreza. Se a oportunidade aparece, por que não? Isso é o que fazem os banqueiros, os políticos, as grandes fortunas.

Estes germens de discurso apareceram várias vezes. Na voz de uma mãe em um supermercado (“não tem nada, o que vão fazer?”), na de um jovem desempregado (“é preciso se rebelar”). As gangues juvenis são a expressão final e niilista deste fenómeno de não pertencimento social e de falta de perspectiva de vida. “As gangues oferecem uma relação de pertencimento a uma estrutura, uma disciplina, um respeito que os jovens não encontram em nenhum outro lado”, escreve Ann Sieghart no The Independent.” Marcelo Justo - Correspondente da Carta Maior em Londres.

Parece objectivo que se gerou momentaneamente uma nova ordem e ela foi imposta nas ruas. Nessa nova ordem participaram milhares de pessoas sem distinção racial – apenas um facto saliente, são na maioria muito jovens. Nessa “anarquia” gerou-se um certo sentimento de impunidade, ou pelo menos de possibilidade. Mas o relato de Marcelo Justo merece tentar algumas diferenciações.

a) Um jovem roubou pó de talco e fraldas para o filho. Uma mercearia de um imigrante português foi despejada restando pouco mais do que 3 garrafas de azeite. Os supermercados (bens alimentares e de uso corrente) TESCO foram atacados e de lá levaram o que puderam. São roubos de bens de primeira necessidade que correspondem à necessidade de elementar sobrevivência.

“As consequências do regime de propriedade privada sobre a condição humana, os efeitos da alienação do trabalho, são profundamente desumanas. Atentam contra as necessidades do operário como homem; acabam por limitar – ou por tentar limitar – essas necessidades à sua expressão mais simples, à sua expressão animal: comer, subsistir… O capitalismo conduz pois a um dramático espoliamento do homem, a uma perda do seu ser. Com ele, o significado da existência, o seu objecto e a sua dignidade, já não são para o homem, o ser (ser um homem, manifestando todas as possibilidades e faculdades de homem) mas sim o ter (isto é possuir, por muito pouco que seja, para poder ao menos sobreviver)”. (Karl Marx, Textos escolhidos e anotados 2, editorial notícias)

b) Lojas de marca desportiva, telecomunicações e electrodomésticos são assaltadas. Aqui, para além do valor de uso da mercadoria, do objecto, entram por vezes outros factores: a posse do valor monetário ou do valor simbólico. Aquele objecto que milhares de vezes se viu na TV, em placards publicitários no metro, no autocarro, no comboio, na estrada e normalmente proibido – não por lei do Estado, mas pela lei da economia capitalista que exclui o pobre de lhe ter acesso tornando-o ainda mais “mágico” e desejado -, passou a ser acessível no contexto do tumulto, estava ali à mão… Voltemos a Marx:

“A forma valor e a relação de valor dos produtos do trabalho não tem absolutamente nada a ver com a sua grandeza física. É apenas uma determinada relação social dos homens entre si, que, nesse caso, se reveste, para eles, de forma fantástica de uma relação das coisas entre elas”. Sobre o feiticismo da mercadoria, (Karl Marx, Textos escolhidos e anotados 2, editorial notícias)

De facto, o uso de objectos de marca como a roupa por exemplo, representa muitas vezes, nomeadamente em bairros mais pobres onde as massas têm mais dificuldade em aceder aos produtos mais caros, um sinal de sucesso do indivíduo, um sinal de nível económico superior, de diferenciação e de superioridade. De certa forma poder-se-á dizer que o valor simbólico da marca acrescenta valor simbólico por vezes decisório ao valor de uso e é uma representação do feiticismo da mercadoria, tornando-o maior e acrescentando em muito a sua capacidade alienadora.

c) Carros, lojas e casas de vizinhos [incluindo pobres emigrantes] incendiadas, o barbeiro do bairro vandalizado, pessoas são assaltadas só porque se tornam indefesas perante o grupo que faz a (des)ordem ou a anarquia, 3 mortos porque defendiam a sua mesquita. A violência dirigida aos mais fracos mesmo que estes sejam tão pobres como eles, tão jovens como eles, tão explorados como eles, ou até tão britânicos como eles. No gangsterismo talvez tenha estado as lideranças e as iniciativas mais graves dos tumultos. O “poder” do “controlo do território”, o abuso da força, a alienação inspirada no poder dominante ou lumpen-proletariado replicando a violência burguesa para com as próprias massas.

Há elementos gangsteristas que satisfazem-se e valorizam-se (nos conceitos e padrões de grupo) no confronto com a polícia; fuck the police é uma frase espalhada também por cá. Mas é também uma relação biunívoca, também há muitos elementos assim na polícia, fuck the gangster. O confronto com a polícia é aparentemente um confronto com uma força repressora do regime capitalista, mas, em minha opinião, é mais um “ideal de confronto” e disputa de autoridade – não é uma atitude anti-capitalista é uma atitude ilusoriamente anti-autoritária. Os “nossos heróis estão presos” ouvi uma vez num bairro.

Alguns elementos, em particular os anarquistas, encontram na polícia o elemento central da autoridade do Estado contra o qual é preciso lutar fisicamente, a provocação à ordem na imagem da provocação ao regime, o tumulto inconsequente na imagem da sublevação popular, ou até o fogo na imagem da destruição do poder burguês.

Ao contrário das reacções de alguns activistas e dirigentes de esquerda, estas acções não contestaram o Estado enquanto instrumento burguês de dominação, opressão autoritária e de classe – não é por aqui que a esquerda cresce e ganha apoio popular anti-capitalista.

Eis o que Friedrich Engels, escreveu em Março de 1873, no livro “sobre a autoridade”:

“Os anti-autoritários pedem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, antes mesmo que se tenham destruído as condições sociais que o fizeram nascer. Pedem que o primeiro acto da revolução social seja a abolição da autoridade. Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reaccionários. A Comuna de Paris teria durado um dia que fosse se não se servisse dessa autoridade do povo armado face aos burgueses? Não será verdade que, pelo contrário, devemos lamentar que não se tenha servido dela suficientemente? Assim, das duas uma: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e, nesse caso, só semeiam a confusão; ou, sabem-no, e, nesse caso, atraiçoam o movimento do proletariado. Tanto num caso como noutro, servem à reacção”.

d) Alguns protagonistas das acções manifestaram o seu descontentamento com a polícia ou com os políticos mas isso não pode ser considerado um programa reivindicativo. Não conheço [não nego em absoluto a sua existência] exigências de reposição de medidas de apoio social, demissão de ministros, refinanciamento das escolas, reabertura dos centros de apoio juvenil nos bairros… O poder ou a “esquerda oficial” não tiveram necessidade de responder com propostas políticas. O chefe do Partido Trabalhista, na senda vergonhosa da traição à esquerda, exigiu mais polícia e colocou-se ainda mais à direita de Cameron criticando-o de estar a reduzir as polícias com os cortes orçamentais. Cameron reagiu tarde, procurou livrar-se de culpas pelo atraso na resposta com a polícia, numa relação algo difícil depois da descoberta das escutas telefónicas ilegais e generalizadas. Os tumultosos não tiveram aliados, tiveram o pedido de compreensão para o agravamento da situação social da parte dos activistas sociais.

e) Os tumultos podem mediatizar-se mundialmente mas nada acrescentaram ao avanço da consciência das massas – antes pelo contrário - as posições mais reaccionárias e anti-democráticas cresceram em apoio popular; quando muito incentivaram uns quantos a incendiar carros em Berlim. As posições inspiradas no CDS e em Paulo Portas, de retirada de apoios sociais a participantes nos distúrbios recolheram de imediato 100 mil assinaturas. Não importava quem tinha cometido o delito, toda a família pagaria por isso.

Cavalgando a oportunidade reaccionária Cameron anunciou novas medidas repressivas em que “os bons iriam punir severamente os maus” e ameaçou expulsar das habitações subsidiadas pelo Estado toda a família de quem tivesse participado dos distúrbios. O governo estuda restrições à liberdade nas redes sociais, fotografias de pessoas estão a ser difundidas em ecrãs de rua gigantes apelando à bufaria e à denúncia violando todos os princípios democráticos (mesmo em democracia burguesa) de presunção da inocência enquanto não for provada a culpa, as penas estão a castigar “exemplarmente” mesmo delitos menores…

 

4. As violências e seus significados.

A esquerda, e em particular os marxistas, têm que deixar muito claro a condenação destes tumultos, mas se os condenamos não deixamos de tentar perceber a sua razão material e histórica. Os tumultos poderão ser um grito de desilusão, raiva e revolta, mas não se dirigiram aos provocadores da desilusão da raiva ou da revolta. De uma maneira geral as acções não tiveram como alvo as instituições da burguesia, os seus símbolos, nem as “relações de exploração”. A solidariedade de classe e a razão humana foram trocadas pela violência anárquica.

Estas são algumas das razões fundamentais que me levam a discordar do artigo publicado por Terry Conway e Billy Curtis publicado na Internationalviewpoint.org e no combate.info. A violência de grupos isolados que se batem com outros grupos, um pouco com a polícia, - mas essencialmente aterrorizam as próprias massas - não significa nenhum “conflito aberto com o Estado” como os autores afirmaram. Quando muito significariam um conflito com a propriedade privada como valor, mas nem isso. Incendiar carros de vizinhos tão ou quase tão pobres como eles, casas onde vivem imigrantes, pequenas fábricas ou lojas de pequenos comerciantes terá quase tudo de fetiche pirómano e quase nada de anti-capitalista. Também por isso é errónea a afirmação de que o “neoliberalismo britânico colhe o que semeou”.

Com o devido respeito, trata-se de uma análise um pouco pueril sobre os conflitos de classe. Afirmamo-lo em jeito de teorema: a violência que divide as massas e faz evoluí-las para a direita não se opõe ao neoliberalismo e, em determinadas circunstâncias, até pode ser auxiliá-lo. O conjunto de argumentos aduzidos neste artigo demonstram-no suficientemente.

O que talvez se evidencie em todos estes acontecimentos, sem juízo de “moral” político ou ideológico para com ninguém, é a fragilidade da esquerda em geral e da marxista em particular nestas terras monárquicas. Quando a consciência das massas é mais alienada, quando a fragilidade dos elementos subjectivos revolucionários apresenta dificuldades em sinalizar uma oposição e quando a luta se desenrola no quadro de um país central do imperialismo global, os trabalhadores têm mais dificuldades em construir oposição, luta consequente e desenvolver uma linha de acumulação de forças à esquerda.

Por outro lado há, como Hannah Arendt, quem acuse os marxistas de que “glorificam a violência”. É falso. A violência tem sido o instrumento usado pelas classes dominantes para subjugarem as classes dominadas. A violência é glorificada sim pela burguesia, basta caminhar nas ruas de Londres para verificar a glorificação militar nos imensos monumentos aos seus heróis protagonistas de guerras imperiais e de subjugação de outros povos. Os marxistas não fazem é iludir as massas com falinhas falsas sobre a paz no capitalismo. Do Iraque ao Afeganistão, do Egipto aos Balcãs, da Líbia às Malvinas (Falklands), de Timor à Austrália ou à Índia, a intervenção violenta do imperialismo – no qual se destaca a Inglaterra – foi feita para subjugar os povos e capturar as suas economias.

Também do Egipto à Tunísia, de Timor a Portugal… a libertação dos jugos facínoras não foi possível fazer-se sem violência, pela simples razão de que o poder não pretende abdicar do seu domínio e os avanços civilizacionais obrigam a rupturas. Como referiu Luís Fazenda no seu artigo na Comuna nº 25, intitulado “Zizek e o fazer qualquer coisa”:

“Quando grandes massas se levantam contra o poder estabelecido (como estamos a presenciar no momento no Norte de África e no Oriente Médio) essa violência legitima-se pela vontade revolucionária. É rigorosamente, um poder constituinte, que emerge”.

O capitalismo financeirizado está a exponenciar as contradições. As tensões daí resultantes serão cada vez maiores e mais alargadas, novos conflitos surgirão – independentemente da nossa vontade. Cada vez se torna mais importante a presença do elemento consciente que representa os trabalhadores e a sua capacidade de conquista do apoio das massas. O elemento que ajuda na evolução da consciência social, que ajuda na construção da reivindicação e do programa político, que procura momentos e formas de acção mais favoráveis, que procura juntar forças e alianças, que não se substitui ao papel das próprias massas e respeita a democracia dos movimentos sociais.

Até porque, como escreveu Lénine, em 1913, “sobre a burguesia e a paz”:

“O poder está nas mãos dos bancos. Dos cartéis e do grande capital em geral. A única garantia de paz é o movimento organizado e consciente da classe operária”.

Os marxistas são os primeiros defensores da paz, mas ela não será possível enquanto existir a opressão da pessoa pela pessoa, a opressão de milhões por alguns, a opressão do proletariado cada vez mais vasto e empobrecido pela burguesia e pela finança, a opressão das nações por uma nação imperial… Até lá lutaremos, com ou sem violência!

Victor Franco

(1) Os 23º e 24º capítulo de O Capital, livro I tomo III da edição Avante, que tratam a “Lei geral da acumulação capitalista” e “A chamada acumulação original” são magníficos na descrição da evolução sociedade inglesa e de como a violência, a mais alargada brutalidade e até o extermínio foram impostos e decisórios na sua transformação.

(2) Se não existissem salários ou subsídios de desemprego mínimos, ou seja se o trabalhador leiloasse a venda da sua força de trabalho a valores inferiores estabelecer-se-ia uma “maximização do lucro por parte dos empresários, a maximização da utilidade por parte dos trabalhadores e a igualdade entre procura e oferta globais de trabalho, sendo então um equilíbrio de pleno emprego, um ‘óptimo de Pareto’.” Margarida Antunes, O desemprego na política económica.

(3) Por “graça” cita-se uma também passagem em que Marx denuncia um padre propagandista conservador, Thomas Malthus, célebre por divulgar a teoria da população, a teoria da limitação dos nascimentos no proletariado como remédio para a miséria. Para Malthus todos os males que hajam operários a mais (desempregados) têm origem num triplo excesso: excesso de consumo, excesso de população e excesso de produção. Karl Marx, Textos escolhidos e anotados 2, editorial notícias.

 

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