A luta pela dignidade no Magrebe Versão para impressão
Terça, 01 Março 2011

“Virá um tempo em que os nossos descendentes, indignados, quedar-se-ão estupefactos ao lerem a nossa história e darão à mais inconcebível demência os nomes que merece.”

Sieyes – Ensaio sobre os privilégios1

 

Assistimos com manifesta indignação às revoltas que grassam do Magrebe ao próximo Oriente.

A faixa que vai de Marrocos ao Bahrain é hoje o foco da política internacional pelas melhores e pelas piores razões.

As melhores são as manifestações democráticas dos cidadãos e a demonstração de que uma ordem social só existe enquanto os cidadãos a ela se submeterem, tornando claro a todo o Ocidente que também a ditadura do mercado não é uma inevitabilidade mas sim um consentimento.

As piores referem-se ao grau de insanidade das repressões que as classes governantes têm exercido sobre os seus concidadãos, recorrendo ao uso de armas de fogo contra cidadãos desarmados que se manifestavam pacificamente.

A manutenção de um modo de vida privilegiado em relação à generalidade dos cidadãos é vista pela classe governante como o objectivo do poder; como tal, é ao serviço desta manutenção de privilégios que o aparelho de repressão do Estado actua.

Os regimes em causa têm uma ideologia totalitária comum, indispensável à manutenção de uma estrutura parasita do Estado e dos seus cidadãos, uma espécie de organização piramidal mafiosa de raiz cleptocrática que se estrutura de modo a conseguir extrair o máximo de benefício da classe governada.

A renovação é praticamente inexistente, sendo que a ascensão etária e social dos filhos da classe privilegiada provoca a necessidade da criação de formas mais rebuscadas e eficientes de exploração, de modo a garantir uma diferenciação entre estes e a classe governada, sem no entanto haver uma alteração ou renovação da cúpula dirigente, fazendo assim a pirâmide de governo crescer em altura.

Este crescimento pode ser sustentado em países com elevadas riquezas em termos de matérias primas durante um largo período temporal, no entanto, como até os poços de petróleo têm um fundo, rapidamente se chega a uma situação de insustentabilidade do processo piramidal de distribuição de privilégios -- um pouco à imagem do esquema de Ponzi, celebrizado por Bernard Madoff.

Quando assim acontece, o aparelho de repressão do Estado ameaça desintegrar-se e existe a possibilidade de apoio a uma alteração estrutural da forma de organização social, com o objectivo de integração na distribuição de privilégios que a nova classe governante instituída fará.

Em países como os de que estamos a falar, com sociedades excessivamente policiais ou militarizadas, um lugar no aparelho de repressão é muitas vezes a única oportunidade de um emprego estável e de garante de sobrevivência num patamar aceitável de dignidade, assim como a primeira porta de entrada para aqueles que não fazem parte da casta governante na esfera do domínio político e consequentemente na ascensão social.

Assim se explica a relutância e a demora do apoio, seja do exército seja das polícias, às revoluções que foram acontecendo, algo que tenderá a ocorrer sempre que a revolta tiver origem popular e não militar.

Outro ponto a salientar é o da violência repressiva exercida de uma forma verdadeiramente bárbara.

O desespero que manifesta uma tal actuação é apontado por diversos autores como um dos principais catalisadores do processo contestatário: ao verem que os governantes não olham a meios para manter os seus privilégios, os cidadãos percebem que não será possível uma reforma, uma remodelação, ou até uma ditadura “de rosto humano”, sonho de muitos governos Ocidentais que até agora teimavam em tapar os olhos com petrodólares.

A brutalidade da resposta e a sua desproporção não permitem qualquer volte-face e saída diplomática, os cidadãos jamais voltarão a consentir ser governados por esta mesma classe.

Tal como Sun-Tzu escreveu: “Se não deixas alternativa de retirada ao adversário ele lutará até à morte”. E assim, noite após noite na praça Tahrir e em Benghazi, os jovens continuaram na rua, sob pena de morte. Não pela razão racista que muitos autores reclamam, da diferença cultural entre Orientais e Ocidentais no que diz respeito ao valor que dão à vida; não é por desprezo à si próprios que o fazem mas sim pela consciência da impossibilidade de viver uma vida digna, uma vida de acordo com o alto valor que esta tem para cada uma daquelas mulheres e cada um daqueles homens. Afinal, só o elevado valor que reconhecem à vida pode levar alguém a dar a sua em troca de uma melhor para os que ficam; não se tratam de jovens temerários e irracionais, mas de pessoas conscientes, acordadas e extremamente razoáveis. Uma vida sem dignidade não é uma vida que mereça ser vivida, não vale a pena morrer todos os dias mais um pouco quando não conseguimos olhar a família nos olhos.

Não vale a pena morrer mais um pouco quando nos tiram a casa, os objectivos e os sonhos.

A dignidade, a vida, os sonhos não são negociáveis, não se vendem nem se alugam ou trocam.

Estas pessoas sabem que inevitavelmente a árvore da liberdade continua a ter como semente o corpo do revolucionário e como adubo o seu sangue.

Existem hoje duas classes: a dominante e a que se deixa dominar, seja pela força da propaganda ou pela força das armas.

A ordem só existe enquanto for consentida, estas pessoas sabiam-no e agora sabemo-lo nós.

Francisco Silva

1Sieyes, O que é o terceiro Estado? , Círculo de Leitores, Abril 2009

 

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