Em nome da humanidade: novos contornos do intervencionismo internacional Versão para impressão
Segunda, 04 Outubro 2010

O humanitarismo constitui uma referência profundamente ambivalente da política internacional do nosso tempo.

Artigo de José Manuel Pureza

Por um lado, dando expressão ao progressivo ascendente da dimensão emancipatória dos direitos humanos, o humanitarismo tornou-se numa marca forte de um discurso e de uma acção política que rompem a couraça das soberanias mais asfixiantes e abrem campo para uma centralidade dos direitos individuais e colectivos na estruturação da ordem internacional. Por outro lado, porém, o humanitarismo tem vindo a ser cooptado pelo sistema de poder mundial integrando cada vez mais o argumentário que legitima o intervencionismo disciplinador do centro sobre as periferias turbulentas do sistema mundial.

Vamos por partes.

As últimas duas décadas legaram-nos uma transformação profunda no entendimento da paz e do humanitarismo. A velha paz das soberanias – a paz negativa e minimalista do calar das armas – cedeu lugar à exigência alargada de uma paz positiva, feita de anulação não só das violências físicas mas também das violências estruturais e culturais. A “Agenda para a Paz”, apresentada pelo então Secretário-Geral das Nações Unidas Boutros-Ghali em 1992, deu corpo a essa mudança ao assumir como tarefa principal das missões de paz de ONU não apenas a manutenção da paz (peace keeping) mas também, e sobretudo, a construção da paz (peace building), ou seja a adopção de um modelo político, económico e institucional supostamente garante da estabilidade e da inserção pacífica na ordem internacional. Neste quadro, o velho humanitarismo, feito de uma assistência às vítimas (militares e civis) dos conflitos pautada por critérios de isenção e de respeito pelas soberanias dos Estados envolvidos, foi objecto de dura crítica pelos movimentos sem-fronteiras (médicos, jornalistas, juristas) que lhe apontaram o vício de se alhear dos mecanismos profundos geradores de conflitualidade e, como tal, de ser cúmplice da respectiva perpetuação. O “novo humanitarismo” daí resultante apresenta-se como apostado em gerar dinâmicas de transformação política e económica nos cenários de turbulência social, em vista da erradicação das raízes mais fundas dos conflitos.

É preciso ir além das aparências de benignidade e julgar os resultados políticos concretos destas mudanças conceptuais, tendo em conta que elas não ocorrem num vazio mas sim no quadro de relações de força concretas. Destaco dois pontos. Em primeiro lugar, há um evidente paradoxo no novo humanitarismo: a transformação estrutural que ele advoga é feita em nome da erradicação da conflitualidade – ou seja, o humanitarismo é política em nome da ausência de escolhas… políticas. Essa sua aparência consensual tem estimulado o seu uso como fundamento dificilmente disputado de formatações políticas em escala universal, aplicadas, em última análise, com o apoio de intervenções militares. E esse carácter sedutor do humanitarismo mais se acentua quando nos damos conta de que, no terreno, ele serve de suporte à actuação de verdadeiras parcerias público-privadas – um mix de Estados “doadores”, de organizações intergovernamentais e de ONG’s – que se substituem aos governos locais no exercício de funções de governação. Em segundo lugar, o humanitarismo assim redefinido passou a integrar o bloco retórico (e ideológico) que anima a reconfiguração da principal expressão actual do sistema de de poder em escala mundial. É, de facto, em nome do fim dos mecanismos geradores de violência e de conflito que os países do centro dos sistema-mundo vêm alimentando uma representação social da periferia que vê nela uma falha perigosa da modernidade (daí o uso da retórica dos “Estados falhados” para legitimar intervenções “terapêuticas”) que supostamente condena esses povos à ingovernabilidade. Este desdém pela autodeterminação dos povos alberga uma vingança tardia contra o anti-colonialismo e a capacidade que ele teve de moldar, em meados do século passado, a política e o direito internacionais. O humanitarismo está pois hoje posto ao serviço de exercícios de reengenharia social, institucional e económica, assumida como receita única externamente estabelecida e induzida. A “boa governação” é a fórmula mágica que dissimula essa padronização imperial dos modelos políticos e económicos, legitimada por um senso comum que desistiu da centralidade das escolhas políticas radicais para colocar no seu lugar o socorro às vítimas e a prevenção de conflitos.

Ora, as grandes dificuldades que o “império benigno” assim edificado coloca a quem assume um posicionamento crítico da estrutura de poder internacional é que ele se mostra tendencialmente como um “império em negação”, ou seja, como algo despolitizado – os procedimentos da sua construção são apresentados como meramente “técnicos”: “criação de capacidades”, “construção de instituições”, “empoderamento local” são bengalas retóricas muito frequentes – e em que não há lugar à assunção de responsabilidades dos seus mentores pelos resultados dessa padronização de práticas e de modelos de organização. Neste quadro de sofisticação da relação imperial, os activistas do humanitarismo desempenham frequentemente uma função semelhante à que as ordens mendicantes tiveram em outros impérios de outros tempos. E também essa circunstância recomenda uma leitura política fina que resista à tentação de tudo reduzir a velhas leituras que têm tanto de simples quanto de preguiçosas.

 

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