A crise e a centralidade da democracia Versão para impressão
Segunda, 03 Outubro 2011

ilustrao do artigo de joana e bruno

A crise das dívidas soberanas resulta não só do ataque especulativo das agências de rating, ao serviço dos seus grandes clientes e dos seus detentores de capital, mas de uma crise capitalismo. O capitalismo foi financeirizado e as economias desreguladas pelo braço político da burguesia, com base na ideologia neoliberal. Ou seja, embora a crise faça parte da própria natureza do capitalismo, essa evidência não faz recuar a necessidade da luta política, antes pelo contrário. A democracia enquanto avanço da vontade e do interesse popular assume um papel central.

 

1. Crise do capitalismo e o papel da política

A desregulação foi planeada. No caso americano, Reagan sabia o que estava a fazer quando, em 1987, colocou Alan Greenspan na Reserva Federal. Colocar alguém que é contra a regulação, um seguidor do filósofo fundamentalista de mercado Ayn Rand, na regulação é o mesmo que dizer que não haverá regulação. Alan Greenspan foi a mão invisível que trouxe a combinação desejada pelos interesses do grande capital representados na eleição não só de Reagan mas de todos os que mantiveram o sistema; essa combinação explosiva é: o excesso de liquidez mais a falta de regulamentação. Ainda em funções, Greenspan viveu a bolha tecnológica, que rebentou em 2000/2001, e contribuiu para encher a bolha do imobiliário.

Interrogado em Capitol Hill, a 22 de Outubro de 2008, numa audição sobre as causas e efeitos da crise financeira, Alan Greenspan falou da sua ideologia. E como disse o próprio: “Bem, lembre-se que o que é uma ideologia, é uma estrutura conceptual com a qual as pessoas lidam com a realidade. Toda a gente tem uma. Você tem que ter - para existir, você precisa de uma ideologia. A questão é se ela está correcta ou não”. O erro da sua ideologia é resumido por Greenspan da seguinte forma: “Eu cometi um erro ao presumir que o interesse próprio das organizações, especificamente bancos e outros, era tal que elas [as organizações/corporações] eram mais capazes de proteger seus próprios accionistas e suas participações sociais nas empresas”. Greenspan não teve dúvidas quando respondeu com um “Absolutamente, absolutamente” à síntese feita pelo congressista Henry Waxman: “Por outras palavras, descobriu que a sua visão do mundo, a sua ideologia, não estavam correctos; não estava a funcionar”(1). Este episódio é usado pelo discurso pró-capitalista para pessoalizar a questão, para falar de um “erro de Greenspan”.

A ideia de um “erro de Greenspan” só poderia ser metafórica, pois as crises do capitalismo fazem parte da sua própria dinâmica, das contradições internas do sistema capitalista. O capital está sempre à procura da superação das barreiras que se colocam à acumulação. A tendência para a queda da taxa de lucro identificada por Marx é um importante ponto de partida; uma ideia que deve ser articulada com a definição do capital, nos Grundrisse, como impulso desmedido e sem barreiras de ultrapassar as próprias barreiras. Em termos políticos, importa entender as crises do capitalismo como Lenine, quando disse que “situações absolutamente sem saída não existem” (1920), desmentindo aqueles que queriam ver na crise uma derrocada mecânica do sistema capitalista.

Um importante meio de “resolver” esses problemas estruturais do capitalismo é a deslocação geográfica dos investimentos e do poder para os controlar, através do colonialismo e do neocolonialismo. Outro exemplo é o fomento (político) da imigração, nomeadamente aquando da reconstrução da Europa, como meio (de deslocação geográfica de factores de produção) para reduzir o custo do factor trabalho e, a prazo, fazer recuar as conquistas sociais das trabalhadoras e trabalhadores.

Actualmente, a condenação à clandestinidade das trabalhadoras e trabalhadores imigrantes, essa ilegalização de pessoas, é um meio ainda mais eficaz para explorar o mais possível quer imigrantes, quer nativos e para colocar uns explorados contra os outros. Mesmo a migração interna de cidadãos europeus (ou até uma espécie de novo sonho angolano) serve(m) para manter um horizonte geográfico de esperança para quem dá (ou sonha dar) o salto, mas nunca vai além da solução (geralmente temporária) de casos particulares.

Acresce ainda o dumping social e as deslocalizações de empresas quer entre Estados-Membros, quer para Estados onde a taxa de exploração atinge níveis há muito superados na Europa, de que o maior exemplo, em todos os sentidos, é a China. Finalmente, conforme defende David Harvey (2010), o capitalismo nunca resolve as suas crises, desloca-as geograficamente (e entre sectores): México 1994, Leste e Sudeste Asiático 1997-98, Argentina 1999-2002, América do Sul 2002, Crise Financeira de 2007-2010.

Alguns distraídos pelas canções da globalização até acreditaram numa geoeconomia que ia substituir a geopolítica. Essa separação para nós é duplamente insatisfatória: primeiro, se como afirma Defarges (1994), a “geopolítica analisa as relações entre o homo politicus e o espaço” e necessariamente a “geoeconomia […] examina as interacções entre o homo economicus e o espaço”, então são estudos e realidades parciais de uma mesma realidade. Segundo, porque para nós, essas realidades nem existem em separado nem tão pouco é verdade a ideia de que a liberalização e o crescimento do poder das multinacionais caiu do céu – os governos e as suas organizações tiveram um papel determinante.

Acresce ainda, aliás a crise financeira que se iniciou em 2007 demonstrou-o à saciedade, que os Estados e a base territorial têm um papel fundamental. Há bancos “too big to fail” cujos prejuízos são nacionalizados. Há um “oligopólio” de agências de rating de capital maioritariamente americano, Moody's, Standard&Poors e Ficht e há, um quarto gigante, a chinesa Dagong. Há poderosas empresas semi-públicas como a PetroChina e a brasileira Petrobras, respectivamente sexta e oitava maior empresa a nível mundial no ranking da Forbs, ou mesmo totalmente estatais como a Gazprom russa, maior exportadora de gás natural do mundo e detentora da décima quinta posição no ranking das maiores empresas mundiais (Forbes 2011). Há factos mais duros e evidentes, que nem por isso esgotam o significado destes factores da política mundial, que vale a pena recordar: lembremos o ano de 2009, que começou gelado não só por uma questão de negócios privados mas também por questões geopolíticas, bastou à Gazprom fechar a torneira de um gasoduto destinado a Kiev para gelar meia Europa.

Estas notas sobre a importância dos territórios políticos estão longe de ser exaustivas mas são suficientes para recordar a sua importância. Felizmente, poucos vão sendo aqueles que concebem o mundo a la Negri e Hardt, ou seja, como um império sem centro que podia ser atacado em qualquer dos seus pontos; perspectivas semelhantes a essa chegavam a ver na iconoclastia da acção directa das pedras contra as montras do McDonald's um grande ato de luta, um ataque fortíssimo no inexistente coração do império.

Voltando à crise propriamente dita e sem sair da questão dos territórios políticos, note-se que a grande finança e o grande patronato, longe de chorarem sobre o leite e sangue derramado, estão sempre prontos para se alegrar, mais ou menos secretamente, com uma schumpeteriana destruição criativa que deriva das crises (e que, contrariamente à tese de Schumpeter, não traz consigo nenhum socialismo). É que esta destruição criativa não é só a destruição dos seus concorrentes, mas também dos direitos sociais. É à eliminação de concorrência por pressão da crise e, em soluções a la FMI, ao recuo dos salários directos, à colonização dos salários indirectos, com privatizações e parcerias público-privadas nos serviços públicos, que o grande capital vai buscar os frutos criativos da destruição, a captura do fruto do trabalho alheio.

 

2. Os povos europeus e a crise... da democracia

Como são aceites as políticas ruinosas para os povos? Há muitos fantasmas que são levantados em riste para, em diferentes graus e conforme o momento, pelo medo ou pela impotência, levar os povos a subscrever, ou a calar-se, perante políticas que são contra os seus interesses. Importa-nos aqui o caso europeu: primeiro, era uma globalização que era mesmo assim e não havia nada a fazer, e até era bom, e não nos podíamos armar em “conservadores”, havia que aderir à globalização (que nem sequer era chamada capitalista, pois o modelo era único, tinha a marca do “fim da história”). Mas eram (e já vinham sendo) também as directivas de Bruxelas, esse espectro de um poder que, quando interessava aos governos, era (no discurso) alheio à sua vontade, mas que sempre e, de facto, era um poder alienado às cidadãs e aos cidadãos da União Europeia. É, finalmente, o fantasma de um mercado que quanto mais vê sangrar, mais sangue quer, e nunca o sangue popular é suficiente para acalmar os misteriosos deuses dos mercados.

A questão é que esta Europa foi feita para ser assim, com estes interesses e estas contradições. Elemento central, são contradições planeadas (nos tratados) entre um mercado comum europeu e sistemas sociais e fiscais nacionais. A pressão da fuga de capitais e das deslocalizações é maior num mercado comum. Disto resulta que a redução dos direitos laborais e o abaixamento dos impostos sobre o capital são sempre feitos sob o argumento de concorrência com os outros Estados-membros. A estratégia da UE para o comércio fez o resto com a defesa acérrima da liberalização mundial do comércio via OMC, sob a ideia de ninguém parava a Europa, de que somos uma grande potência comercial e de que a liberalização é boa ponto e “todos” ganham com isso (menos os agro-exportadores, claro; que os EUA e a UE, só se fossem loucos, ou não vivêssemos sob o capitalismo, libertavam o comércio agrícola).

A Europa está a ser governada à margem dos próprios tratados. Cimeiras entre a França e a Alemanha são uma continuação até um pouco mais feliz que a vassalagem de meia-hora prestada pelo então primeiro-ministro José Sócrates à chanceler alemã. As eleições regionais alemãs sobrepuseram-se à política europeia, condicionando e atrasando decisões. E para que as legislativas corram bem a Angela Merkel, o primeiro-ministro Passos Coelho também já veio dizer que não quer dívida pública europeia, que não quer pagar os mesmos juros que a Alemanha. É nisto que o centrão europeu transforma a Europa, a defesa dos interesses do privado Deutsche Bank pelo governo alemão é mais importante que qualquer discurso sobre a “solidariedade europeia” ou que os perigos para o Euro causados pela especulação que bancos (que são europeus e tudo) fazem com a dívida dos países da periferia da União Económica e Monetária. E todo o centrão político da Europa é responsável por isto e por esta integração em que o Banco Central Europeu é reclamadamente “independente”, mas essa independência só existe face à democracia, a dependência daquela ideologia que cujos erros Greenspan confessa, o neoliberalismo, é a verdadeira natureza da coisa. E, em tempos de turbulência, quando a falha da ideologia é gritante, então agravam a exploração comprando a dívida no mercado secundário, subsidiando o duplo lucro da banca privada na especulação com a dívida pública.

O poder democrático do povo é a soberania popular; não falamos do velho apego nacionalista, mas do poder democrático do povo sobre o território em que habita e em que se realiza economicamente. Quando os sociais-democratas defendiam que o espaço europeu era aquele onde poderíamos desenvolver um novo modelo social europeu, herdeiro da chamada tradição social europeia do Pós Guerra, até estavam certos. Mas isso não se fazia pelos caminhos do social-liberalismo, nem da transferência de competências sem democratização da esfera comunitária, nem esquecendo que essa Estado social não caiu do céu. O Estado social resultou de muita luta social, foi a conquista de uma democracia mais alargada que os próprios sociais-democratas trataram de destruir pelos caminhos que os neoliberais declarados apenas inauguraram.

Declaravam solenemente os sociais-democratas que com a sua Estratégia de Lisboa iam criar um modelo social alternativo para competir com os EUA, afirmavam que a democracia europeia sairia reforçada com um Tratado de Lisboa que, afinal, não fosse o diabo tecê-las, não podia ir a referendo. Os resultados dessas duas lisboas estão há vista e os factos da traição aos princípios socialistas são muitos. Ainda assim, muito tempo depois de perdidas as chaves do socialismo engavetado; depois de tantos anos e de tantos Blairs mais thatcheristas que a sua Dama de Ferro; depois de tantos patrocínios a violações grosseiras do direito internacional pela NATO e aliados; depois de criarem as regras monetaristas do euro e o défice democrático da UE; depois de caberem na Internacional Socialista o director do FMI e expulso-em-fuga Mubarak; depois de todas as privatizações de serviços e bens públicos e de todas as nacionalizações de prejuízos: os PS's querem ir à procura da social-democracia.

Onde estão hoje os sociais-democratas? Neste momento, parece que o governo de austeridade do PSOE tem os dias contados, até 20 de Novembro, a fazer fé no poder do populismo que deu a vitória ao PP nas regionais e os demais “socialistas europeus” resistem no poder apenas: Onde estão hoje os sociais-democratas? A fazer fé no poder do populismo que deu a vitória ao PP nas regionais, o governo de austeridade do PSOE tem os dias contados, até 20 de Novembro. Os demais "socialistas europeus" resistem no poder apenas: na Áustria em coligação com o partido popular de direita, na Eslovénia em coligação com os liberais, na Irlanda e na Finlândia em governos chefiados pela direita e, finalmente, na Grécia em coligação com o FMI. Em toda a Europa, a crise foi justificação maior para a cedência final relativamente aos programas originais destes partidos. Os que ainda governam, governam em austeridade e em alianças compatíveis com a mesma. Os que estão na oposição, são as ditas oposições responsáveis e construtivas que subscrevem a austeridade.

A superação do neoliberalismo feita pela mão da direita faz-se pelo sangramento do salário directo e indirecto e pela perda de direitos sociais e laborais, agora já não com base numa ideologia de massas que prometia prosperidade, antes dava para todos mas uns tinham de enriquecer primeiro agora já não há para todos, deliberadamente; agora já não com base nessa ideologia mas numa outra que encerra a própria mutação do sistema político: o paradigma da dividocracia. Os Estados ficam na mão dos credores, não decidem livre e democraticamente sobre as suas políticas. Isto nos Estados da periferia do Euro pode significar a já proposta perda assumida de soberania orçamental com a transferência da mesma para uma esfera comunitária sem legitimidade democrática para tal, o que seria, portanto, uma tutela colonial. E ainda que tal não aconteça (por enquanto) assumidamente, o que são as vassalagens de meia-hora a Merkel ou um memorando da troika FMI-CE-BCE que é programa de governo antes de haver governo? As medidas que estão em marcha são tão brutais que com base na chantagem da inevitabilidade se vai erguendo um poder cada vez mais autoritário nos Estados europeus. Chegou à Europa a dividocracia, essa caricatura e destruição da democracia sofrida já noutras partes do mundo, algumas das quais com menos capacidade de resistência, como os povos dos débeis estados africanos.

O tempo que vivemos é marcado pela resistência. Resistir não é capitular, é reconhecer que, no momento actual da luta social e do ataque dos poderosos da Europa, o comprometimento com o bem-estar actual dos povos nos obriga ao realismo da defesa de certas trincheiras de luta. Apesar da hegemonia presente da austeridade como inevitável, as brechas existentes são reveladoras da centralidade da resistência, nomeadamente, na trincheira dos serviços públicos. Um mero indicador, que não deslumbra ao lado da luta social em diferentes sectores que já se fez sentir em diferentes países da Europa, são os 80,5% que respondem “Sim” à pergunta “Teme que os cortes na Saúde afectem a qualidade dos serviços?” num estudo de opinião da Eurosondagem, realizado em Portugal, em Setembro 2011.

O europeísmo de esquerda não é nenhum fetiche, nem uma mera “boa ideia”. Há uma integração económica e política que justifica a ambição de uma refundação política e social da Europa. As alianças para essa luta encontrá-las-emos naturalmente em todos os partidos, sindicatos e outros movimentos sociais europeus que se possam comprometer com os caminhos para essa Europa. Nessa luta, há coordenadas fundamentais: a defesa intransigente da democracia, da paz, dos serviços públicos e dos direitos laborais.

Joana Mortágua e Bruno Góis

 

(1) Ver vídeo “Greenspan Says I Still Dont Fully Understand What Happene”, disponível no Youtube, http://youtu.be/R5lZPWNFizQ

Referências:

Philippe Moreau DEFARGES 1994, Introduction à la géopolitique, Editions du. Seuil, Paris 1994.

David HARVEY 2010, O Enigma do capital. E as crises do capitalismo, Editorial Bizâncio, Lisboa 2010, originalmente publicado pela Profile Books em 2010.

FORBES 2011, The World's Biggest Companies in Forbes.com, http://www.forbes.com/2011/04/20/biggest-world-business-global-2000-11-intro.html, 20 de abril de 2011

V. I. LENIN 1920, "Informe sobre la situación internacional y las tareas fundamentales de la Internacional Comunista. 19 de julio de 1920" in Discursos pronunciados en los congresos de la Internacional Comunista (Moscú: Editorial Progreso) s/data. (disponível em http://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1920s/internacional/congreso2/01.htm, Marxists Internet Archive, 2001).


 

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