O corpo é meu! Versão para impressão
Quinta, 27 Setembro 2012

 

aborto

Dia 28 de Setembro assinala-se o dia de Ação Global pelo Aborto Legal, Gratuito e Seguro.

Originalmente, o dia assinalava o Dia de Ação para a Despenalização do Aborto na América Latina e nas Caraíbas. Entretanto, desde 2011 a Rede Mundial de Mulheres pelos Direitos Reprodutivos (RMMDR) e agora também a Campanha Internacional pelo Aborto Seguro tornaram este dia num dia de ação nível global, o que faz todo sentido se olharmos para a o ataque aos direitos reprodutivos das mulheres na Europa, desde que esta entrou em crise. Embora os casos mais visíveis sejam os do Estado Espanhol e o da Polónia, em Portugal este direito também já sofreu ataques em plena campanha eleitoral, não sendo, como se verificou, um direito adquirido, mas sim um direito em permanente conquista.

No Estado Espanhol, o governo de Mariano Rajoy prepara-se para voltar á lei de 1985 (semelhante á anterior lei Portuguesa), num retrocesso legislativo considerado brutal para as mulheres. O ministro da justiça do Estado Espanhol, Alberto Gallardón, considera que a nova lei, que porá fim à interrupção voluntária da gravidez até às 14 semanas, é das leis mais progressistas que já fez pois defende o direito á vida. Assim sendo, a interrupção da gravidez apenas será permitida em casos de violação, má formação do feto ou risco de vida para a mulher, e incluirá ainda o dano psicológico. Segundo o mesmo ministro, esta nova lei assegurará os direitos do “não nascido” inspirada na defesa do direito à vida como manda a doutrina definida pelo Tribunal Constitucional. Em nenhum momento o ministro fala sobre os direitos da mulher “já nascida”. Esta doutrina conservadora, que pretende agradar a ala dura do seu partido, vem de encontro á doutrina da Igreja, e já foram mesmo pronunciados alguns exageros quando o bispo de San Sebastian comparou o aborto à escravatura em África ou o bispo de Granada comentou que as mulheres que abortam merecem ser violadas.

Corajosamente as companheiras da Marcha Mundial de Mulheres e de outros colectivos feministas assim como cidadãs e cidadãos do Estado Espanhol saem à rua todas as semanas para lutar contra esta nova lei e tentam que o mundo tome consciência da gravidade desta medida.

Já na Polónia, a lei introduzida em 1993, após a queda do socialismo real, também permite a interrupção voluntária da gravidez apenas nos “três casos excepcionais”: mal formação do feto, violação ou risco de vida para a mãe. País de fortes tradições católicas, o governo tentou passar uma lei que proibia o aborto em qualquer situação (mesmo no caso de violação e risco de vida da mãe). A lei não foi aprovada no parlamento por uma diferença de apenas cinco votos, mas o mais assustador foi o número de assinaturas recolhidas para levar a iniciativa ao parlamento: 500 mil assinaturas em duas semanas. A velocidade com que a iniciativa atingiu o número de assinaturas reflecte o crescente clima conservadora no país, levando o governo a ponderar apresentar de novo a alteração á lei.

Na América do Sul e Caraíbas, a situação é preocupante. O Uruguai acaba de passar uma lei para descriminalizar o aborto até às 12 semanas, mas que ainda precisa de uma segunda votação no senado. O aborto totalmente livre, cuja descriminalização não depende das razões da mulher para realizar o procedimento, ainda é raridade na América Latina. Até agora, as mulheres latino-americanas usufruem deste direito apenas em Cuba, onde o aborto é legal até as 12 semanas de gestação desde 1965; na Cidade do México, onde a Assembleia Legislativa o descriminalizou em 2007, também até as 12 semanas; e em Porto Rico, território incorporado dos Estados Unidos e que, portanto, segue a decisão da Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América, que legalizou o aborto em 1973. No Brasil, a religião e o conservadorismo impedem o debate sobre o aborto, com a própria presidenta Dilma Rousself a declarar-se anti-aborto durante as eleições presidenciais.

Em Portugal, após uma luta dos movimentos feministas com mais de 30 anos, e após um segundo referendo, o aborto foi finalmente descriminalizado. No entanto, Ribeiro e Castro, na altura presidente do CDS-PP apressou-se a dizer que o referendo não era vinculativo, e como tal o direito ao aborto não poderia ser tomado como garantido. Nas últimas eleições contamos com a com a presença do Partido Pró-Vida (braço politico da Federação Pró-Vida) na lista de partidos que concorria às eleições, e cujas únicas propostas passavam pela criminalização do aborto e a proibição dos casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo. Sem expressão em número de votos, o partido falhou no objectivo de obter um lugar no parlamento, o que não impediu a organização à qual está ligado, a Federação Pró-Vida, de apresentar uma iniciativa parlamentar que visava a revisão do que chamou “as leis fracturantes” da sociedade portuguesa aprovadas durante o Governo de José Sócrates (reprodução artificial, interrupção voluntária da gravidez, divórcio, educação sexual, casamento entre pessoas do mesmo sexo e mudança de nome e sexo).

Também o primeiro-ministro Passos Coelho, na altura candidato, não resistiu a tentar seduzir o eleitorado mais conservador, e, em plena campanha eleitoral, admitiu rever a lei do aborto, aprovada democraticamente através de um referendo, numa rara demonstração de democracia participativa neste país. O retrocesso do Estado Espanhol poderá ser a “desculpa perfeita” para o fazer em Portugal, se pensarmos que a descriminalização do aborto e o acesso ao casamento civil por casais do mesmo sexo foi levado a cabo pelo governo do Partido Socialista, inspirado pelo governo do Estado vizinho, na altura também um membro da Internacional Socialista.

O aborto desperta posições opostas, dependendo dos aspectos que sustentam a opinião de cada um ou de cada uma, de cariz político, moral, pessoal, social. Mas não nos podemos esquecer do essencial: o direito de escolha da mulher e a soberania sobre o seu próprio corpo.  O facto do aborto ainda em muitos países ser considerado crime, ser ilegal e clandestino, não existindo a opção consciente e segura para a mulher grávida, fez e faz com que muitas mulheres ainda morram por falta de segurança e condições sanitárias ou sejam perseguidas como criminosas, quando por motivos pessoais recorrem a esta prática. A mulher tem o direito de tomar decisões num assunto que diz respeito à sua vida como o é da maternidade.

O corpo feminino desapropriado, sem voz, forçado a um só destino, ausente de direitos e de escolhas, tem de ser substituído por um ativo, revolucionário e determinado a conquistar o direito de dispor sobre si próprio, da sua sexualidade e da decisão ou não pela maternidade. Como dizem, as companheiras latino-americanas “nem deus, nem amo, nem marido. O corpo é meu!”.

A Rede 8 de Março assinalará este dia com um Flash Mob em frente à Embaixada de Espanha, em Lisboa, às 18h, em solidariedade com as mulheres do Estado Espanhol, mas no fundo, será em solidariedade com todas as mulheres do mundo.

Vânia Martins