Lendas e Narrativas* Versão para impressão
Quarta, 16 Maio 2012

escravos-do-mundo1A sociedade tipo “ocidental” que durante os últimos dois séculos foi sendo construída nas atribulações da luta de classes, mais ou menos aguda, atingiu alto um patamar de progresso tecnológico  sob o comando da burguesia e um sólido acervo de conquistas no âmbito dos direitos humanos sob a pressão da luta do proletariado.

Artigo de Mário Tomé

Quando o discurso ideológico era o da velocidade e altitude de cruzeiro (o tal fim da história) encontramo-nos de repente num estádio de violência anti-social insuspeitado  em condições normais de pressão e temperatura burguesas onde o senso comum se identifica naturalmente, activa ou passivamente, com a linguagem e a política do poder.

O senso comum é determinado pela necessidade mas condicionado pela ideologia dominante, pela encenação global dos particularíssimos e estreitos interesses da burguesia, e pela instauração de um discurso que oscila entre o catitismo patriótico e a auto-satisfação individualista por um lado e, por outro,  a ameaça, a chantagem e a violência implícita contra a rebeldia às medidas  necessárias ao domínio do capital.

Mas a brutal austeridade na economia e a violenta e inédita desestruturação dos parâmetros que caracterizavam a vida dos trabalhadores e dos cidadãos em geral está a provocar, entre várias e graves consequências de fundo, o  enfraquecimento do domínio ideológico da burguesia que até aqui tem vindo a neutralizar, até certo ponto,  a reacção popular e cidadã. Podemos mesmo arriscar dizer que se revela  um lento mas real encontro do senso comum com as respostas alternativas à crise.

As eleições na Alemanha têm penalizado, região a região, a política da senhora Merkel enquanto o operariado alemão, numa aliança objectiva com os restantes trabalhadores europeus, exige, pela luta, aumentos salariais significativos invocando o reforço dos ganhos obscenos do capital.

Em França, uma sociedade moldada pela política de submissão a Merkel, pela política nacionalista, xenófoba, mesmo racista, conseguiu sacudir a canga ideológica e dar um apoio expressivo às propostas radicais de Mélanchon, e elegeu François Hollande, ainda que na ilusão de que a crise que lhe lançaram em cima pode ser ultrapassada com o sacrifício de todos para garantir o bom funcionamento da banca de que todos, afinal, parece dependerem.

Na Grécia, a luta dura, corajosa, fundamentalmente persistente e duradoura, por vezes violenta no enfrentamento da brutalidade da polícia comandada pela finança, foi criando as condições de abertura da “consciência de si” contra o discurso dissolvente e terrorista da burguesia europeia  e de percepção da gigantesca e criminosa fraude com que pretendem não só espoliar os trabalhadores  mas imobilizar a cidadania. O resultado foi a expressão eleitoral da esquerda socialista, o SYRIZA, a segunda força mais votada, e que em sondagens posteriores às eleições já alcançava os 27% de intenções de voto. Indigitada para formar governo não o conseguiu porque todos os outros arautos da resistência à Troika, nomeadamente o Partido Comunista Grego, acharam que fica bem dizer mas não dá jeito fazer, impedindo assim que a Europa da Goldman Sachs, servida pela Merkel, por Barroso, Hollande, Passos Coelho e Tozé Seguro, entre os outros, tivesse que confrontar-se com a alternativa de esquerda socialista, com forte base eleitoral e social de apoio numa sociedade em movimento e declaradamente disposta a resistir e a mudar as condições políticas e sociais.

Os ganhos eleitorais e a subida nas sondagens pós-eleitorais  da esquerda socialista na Grécia  não se devem à possibilidade de vir e integrar um governo mas, pelo contrário, à radicalização da luta que encontrou no programa do SYRIZA a sua expressão política  para guiar um futuro governo. A política, a substância , não a forma.

II

A luta de classes intensifica-se e, em tempo de guerra – que é isto senão uma guerra de ocupação, sem quartel, da parte do capital financeiro ?-, as maiorias  ganham-se pela resposta política ao movimento social e consolidam-se na rua. A luta pela conquista da rua ajuda a acordar a consciência de classe e a dar a cara pelo necessário confronto radical.

Os regimes fascista e nazi ganharam porque os social-democratas, pela repressão em nome da estabilidade contra o “caos”, interditaram a rua ao proletariado ao mesmo tempo que cederam nas alianças políticas com a direita. Porque o seu horizonte se limitava a conseguir o que o capital estava disposto a ceder. A democracia sob o controlo do capital era o único sistema que vislumbravam, incapazes da ousadia da transformação.

O perigo fascista ou neo-nazi que começa a ser apontado com base em resultados eleitorais na Holanda, na França, na Grécia, não deve distrair-nos do verdadeiro perigo: ele está na tecnocracia financeira que se apoderou da democracia, que ocupou países, entre os quais o nosso,  e que, isso sim, insemina o ovo da serpente.

A comparação e analogia históricas são factor importante da definição da estratégia e da táctica políticas. Mas do ponto de vista do materialismo histórico a comparação e a analogia só servem para o presente e para o futuro tendo em conta a dialéctica da actual correlação de forças entre as classes na movimentação social e da expressão política dos interesses dessas mesmas classes. Digo isto porque já faltou mais para virem com a treta de que o nazismo  e o fascismo ganharam porque as forças de esquerda - os comunistas (reais) e os socialistas (reais) - não se entenderam, e que não podemos cair no mesmo erro.

Hoje está bem traçada a linha de demarcação em relação à qual têm que se definir as políticas: o programa catastrófico da troika. Esta a “thin red line” em relação à qual as esquerdas, por mais variadas e livres que sejam, têm que se posicionar

A crise dos dias de hoje, a crise na era da globalização, com repercussões mais agudas na Europa, caracteriza-se pelo facto de a economia contar cada vez menos como eixo fundamental na orientação e opções do capital, mais anárquico e irracional que nunca.

A facilidade irresponsável do lucro da especulação financeira e a renda garantida pelos Estados impedem a procura da solução para a crise na reconstrução económica, ou seja no pleno emprego .

O capital produtor e desenvolvimentista começa a ser encarado  apenas como algo remanescente. A fidúcia açambarcou tudo e já nem dá para saldos. Já só, ainda e por enquanto, as casas de penhores.

III

A luta de classes intensifica-se e só poderá resultar na recuperação dos bens perdidos, e já não seria pouco, se se libertar, por parte dos trabalhadores, da simpática mortalha com que a social-democracia falida a quer tapar.

A luta de classe do proletariado desenvolve-se mais agudamente  num vasto terreno chamado Europa. Aí está a sua força e a sua fraqueza.

A sua força, se se persistir no encontro das vontades várias da esquerda europeia anti-troika, na dinâmica social a ocupar as ruas e, também aí,  ganhar base para a sustentação da política alternativa para a Europa da democracia, do Estado  social, da cidadania e da soberania dos povos. Também aí, e só aí, travará o crescimento do neo-nazismo que se tem alimentado da crise e da propaganda ideológica com que a burguesia sustenta a sua alternativa de razia social.

A sua fraqueza, se preponderar a ideia de que a luta social e política contra o caos imposto à vida das pessoas e pela restauração das condições normais de vida na sociedade impondo uma alternativa à austeridade da troika só pode ter resultado o caos.

Chegou-se ao ponto de a vontade expressa democraticamente, dentro dos próprios limites que o sistema capitalista determina à democracia, como na Grécia – onde em nome da estabilidade impuseram uma regra absurda do bónus de 50 lugares ao partido mais eleito -, exigindo nas urnas uma mudança radical da resposta á crise, ser apresentada como a geradora da instabilidade e o caos na Europa

A linguagem terrorista usada pela burguesia é adoptada, com ou sem modulações mas sem vergonha, pela generalidade dos agentes da comunicação, pelos mais conspícuos fazedores de opinião, pelos mais insuspeitos usuários da liberdade conquistada no 25 de Abril, pela maioria dos intelectuais mais enaltecidos que vão contribuindo pela sua acomodação pragmática para o crédito do abominável. E nem os humoristas salvo raras excepções, conseguem sequer cumprir um mui digno papel de bobos, quanto mais chegarem aos calcanhares dos homens que noutras épocas históricas contribuíram para demolir o frágil edifício da mentira e da corrupção; antes adoptam sem pudor o discurso dominante suavizando-lhe as arestas o que é ainda mais repugnante e nocivo.

As políticas de espoliação e esbulho que desencadearam a crise são apresentadas por doutos analistas, economistas e jornalistas de vanguarda como tolices (sic) a que é preciso não ligar demasiado, pondo antes mãos à obra para começar de novo “como já fizemos tantas vezes”. Deixemo-nos de lamúrias, uma vez mais.

Ver a malta das ribaltas televisivas, que é a malta dominante na cultura dominante, com ares de modernice (“ainda te apanho fumando”!), a malta dos programas de fracturante bolinha vermelha afundada na reverência pseudo chistosa, dando um ar de leveza à brutalidade das medidas impostas a quem trabalha e propagandeando os membros e as propostas do governo da troika como se os questionasse, chega a tornar irrelevante a insensibilidade e o cinismo dos ministros e seus sicários.

Este é talvez um dos mais fortes sinais da necessidade de um programa sem precedentes de propaganda marxista, fundado nos factos e na ciência económica e social, expresso na divulgação simples e clara das ideias capaz do desmascaramento integral da índole bandoleira da classe dominante, do carácter corrupto das relações financeiras,  capaz de sustentar a necessidade cada vez mais sentida  pelo senso comum de radical de transformação social.

* Que Herculano me desculpe