Um fantasma ameaça os ricos da Europa Versão para impressão
Terça, 30 Agosto 2011

americo_amorim

Buffet, detentor da terceira maior fortuna do Mundo, não ouviu nenhum rebate de consciência, ao exigir ser tributado como os seus empregados, e procurou defender-se, como na lenda de Maria Antonieta, ao ouvir o clamor irado dos descamisados: “Não há pão? Atirem-lhes croissants!”
Como ele, dezasseis milionários franceses quiseram dar um recado ao primeiro-ministro François Fillon - que já tinha anunciado um novo imposto sobre os super-ricos para “evitar protestos nas ruas” (Público, 25.08) - disponibilizando-se a contribuir para o sistema fiscal mas “com proporções razoáveis, para evitar a fuga de capitais ou o aumento da evasão fiscal” – vê-se assim como a chantagem resiste, apesar de tudo, ao medo perante a juventude indignada em Espanha, Grécia, Londres, mas também no Chile, Índia, Egipto, Tunísia, Síria, Israel, Iémen e Líbia.
Em Portugal uma manchete do jornal i de 27/08 rezava: “Imposto para ricos. Bloco quer taxar cabeças de gado e ouro”. E a abrir o lead: “Nada escapa na proposta do partido de Louçã.” Assim se caricatura a Esquerda como “pilha galinhas”. Nada escapa! Trema o velho camponês que tem três ovelhas e um cordeiro; e a jovem minhota que herdou da mãe dois brincos e um fio de ouro. Chegaram os comunistas! Escondam os vossos haveres! Pois “como é que o Estado sabe o ouro e a prata que uma pessoa tem? Vamos analisar a questão com seriedade, com ponderação”, diz o vice-presidente da bancada do PSD. Um deputado do CDS pondera, muito sério: “É um tipo de tributação que é quase impossível do ponto de vista operacional”. A operacional Sónia Fertuzinhos, vice-presidente da bancada do PS, promete uma proposta “equilibrada” que “não se resuma à perseguição dos ricos, como quer o BE”. Equilibrada ou equilibrista?
Cavaco Silva, que se tem especializado em equilibrismo, veio defender a taxação dos rendimentos dos mais ricos, mas não do seu património, cruzes canhoto, como quer o Bloco de Esquerda, e contrapôs a reactivação do imposto sucessório. Vade retro, grita o CDS, querem taxar os mortos!
Em 1869, no IV Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores (1ª Internacional), Bakunine introduziu no debate a abolição do direito de herança. Marx defendeu que quem herdasse bens deveria pagar imposto sobre a sucessão, até à abolição da propriedade privada individual. Dizia um projecto de resolução: “(…) o direito de herança é um elemento essencial da propriedade individual, contribui poderosamente para alienar a propriedade fundiária e a riqueza social em proveito de alguns e em detrimento da imensa maioria, e, em consequência, ele é um dos maiores obstáculos à entrada do solo na propriedade colectiva”. Note-se que o que estava em causa era a propriedade colectiva dos meios de produção.
No Manifesto Comunista, Marx e Engels dizem que a sua teoria poderia ser sintetizada numa frase: abolição da propriedade privada. Muitas décadas antes, a burguesia, durante a revolução com que pôs fim à monarquia de direito divino e ao sistema feudal (que permitiu à nobreza viver mais de mil anos de privilégios sem trabalhar, se tal não for considerado espadeirar ao serviço do alargamento das propriedades da coroa), plasmou logo no 2º artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao lado da liberdade, o direito à propriedade, para que o art. 1º - “todos os homens (as mulheres teriam de esperar mais um pouco) nascem e vivem livres e iguais em direitos” - não fosse tomado demasiado à letra.
Mas o direito de propriedade sofreu várias interpretações ao longo da História. Por exemplo, em 1863 o Liberalismo pôs fim ao “morgadio”, direito do filho primogénito a herdar certos bens de família, que vigorou em Portugal desde o séc. XII.
A perda do direito de propriedade tem sido usada como fantasma para amedrontar os pequenos proprietários rurais e comerciais com o perigo do comunismo. A realidade mostra, porém, que a proletarização dos camponeses decorrente da industrialização da agricultura e da concentração da posse da terra, que ocorreu por toda o mundo capitalista, só não atingiu um grau mais violento em Portugal devido ao atraso industrial, às relações e modos de produção quase feudais que Salazar alimentou para garantir o apoio dos latifundiários e ainda devido à saída de emergência da emigração.
Como demonstra Michel Chossudovsky em “A Globalização da Pobreza e a Nova Ordem Mundial”: “Com o tratado de Maastricht, o processo de reestruturação política na União Europeia tem cada vez mais em consideração interesses financeiros dominantes, à custa da unidade das sociedades europeias. (…) O grande capital destrói o pequeno capital em todas as formas de que este se reveste. (…) Assiste-se à eliminação do empresário ao nível regional ou local, a vida nas cidades sofre transformações e a propriedade privada a pequena escala desaparece completamente.” As pequenas e médias empresas são empurradas para a falência pela concentração do capital globalizado. Percebemos assim melhor o cinismo subjacente naquele velho dito capitalista mascarado de utopia: “Não podemos acabar com os ricos, devemos acabar com os pobres.”

 Carlos Vieira e Castro