Londres, o cenário de uma novela psico-nacional Versão para impressão
Terça, 23 Agosto 2011

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É uma tarde, quase noite, igual a tantas outras. Ao passarmos pelo móvel, carregamos, despreocupadamente, no botão do televisor e ligamo-nos ao mundo com a mesma leviandade com que se traga uma azeitona. Neste momento, já nem nos recordamos do gesto, pois o nosso mais novo começou a esbracejar, redondo no chão, a emitir um sonoro silvo, digno de ombrear com a mais potente das sirenes fabris, da era da revolução industrial. Fá-lo, não porque tenha nostalgia alguma dessa época – aliás, nem tão pouco sabe o que foi, uma vez que os seus três anos de idade ainda só o versaram em papas infantis e desenhos animados – mas porque sabe que, para nos arrancar do nosso frenesim quotidiano, agora traduzido na limpeza do louceiro da sala, na família há já quatro gerações, é necessário algo de genuinamente irritante, só ao alcance dos nossos mais novos concidadãos. Infantil ou não, o certo é que resultou e viramo-nos já na sua direcção. Porém, durante este movimento, lançamos um olhar de soslaio à televisão: “Na última noite, Inglaterra registou vários focos de revolta. Milhares de jovens amotinados destruíram e saquearam viaturas e estabelecimentos, em várias cidades da ilha britânica” – anunciava. O nosso filho, ao qual há um instante acorríamos apressadamente, foi relegado para segundo plano. Ele continua a articular algumas palavras, que não conseguimos compreender. Na verdade, já nem o escutamos. Impelidos por um sentimento indefinido, remexemos nervosamente a gaveta onde está o telecomando e retiramo-lo atabalhoadamente. Já na sua posse, certificamo-nos de que nos encontramos num dos quatro canais generalistas. – Talvez não… − pensamos, esperançados. Provavelmente, quando menos esperarmos, todo este aparato será interrompido por uma equipa de investigação criminal, com agentes de corpos esculturais; ou por uma equipa de emergência médica, composta por profissionais cuja vida amorosa apenas rivalizaria com a dos intervenientes dos romances de cordel vendidos em fascículos, os mesmos que durante anos fizeram as delícias das donas de casa portuguesas. Contudo, estas personagens demoram a irromper no ecrã e a estranheza não tarda a dar lugar á apreensão: ao carregar no telecomando, tomamos consciência de que não estamos sintonizados num canal temático. De seguida, olhamos o relógio. Marcas as vinte horas e dois minutos: não restam dúvidas, estamos a assistir ao Jornal da Noite. A par desta revelação desedificante, o nosso filho continua a dizer qualquer coisa, à qual nós respondemos com maquinal assentimento, oscilando afirmativamente a cabeça. O aparente desinteresse com a nossa prole é justificada, dado que estes acontecimentos não são de somenos importância. A frugal Inglaterra está a ferro e fogo! Bem, será que são, de facto, em Inglaterra? É isso! Lemos mal, só pode ser isso. Se voltarmos a ler o rodapé, decerto encontraremos “Paquistão” ou “Irão”, onde julgámos ler Inglaterra. Não queremos com isto dizer que não são pessoas como nós, mas, sabem como é, a cultura é diferente: as barbas fartas, os fanatismos religiosos, a inveterada tendência para fazerem atentados e a devoção por desfiles de massas em ruidosa ovação a mártires suicidas são elementos que não inspiram simpatia na nossa humanidade moderada, do emprego das nove às cinco, do conjugue e dos filhos sorridentes, das idas semanais ao centro comercial e da família reunida em torno da mesa, numa data festiva cujo verdadeiro significado desconhecemos. Nós até os respeitamos, mas eles não querem tomar parte do nosso idílio ocidental e recusam a evangelização civilizacional, que com tanto esforço empreendemos sob a forma de guerras solidárias nos seus países. Em suma, são uns ingratos! Não nos interpretem mal, não somos racistas – em parte, porque a sociedade não o aceita – todavia não nos peçam que olhemos com compaixão as notícias de mortes às centenas, registadas quase quotidianamente por esses lados e que sorrateiramente assomam às nossas casas, no maçador meio do telejornal. Se não julgássemos ter lido Inglaterra, ao invés de um qualquer país terminado com uma vogal nasal, a única emoção de consternação, que nos percorreria, seria relativa aos copiosos flocos de pó, polvilhados sobre o louceiro da sala, aos quais o nosso mais novo é alérgico, coitadinho. Ainda assim, pelo sim pelo não, mais vale desfazer de vez o equívoco e fitarmos de novo o televisor. Depois, apenas o choque. Uma injecção de adrenalina invade-nos o organismo e um frio gélido petrifica-nos os músculos. Ao longe, o nosso mais novo, o Sebastião, não sei se já tinha referido o nome, chama-nos incansavelmente. – Cala-te – vociferamos, sem réstia de doçura na voz, enquanto, no televisor, a imperial Inglaterra é palco de uma insurreição urbana sem precedentes. Volvidos alguns segundos, voltamos a nós e sentamo-nos no sofá a escutar atentamente o que se passa. Os nossos ouvidos agarram a informação sofregamente: “lojas pilhadas, casas assaltadas, carros a arder, barricadas nas ruas…”. As notícias chegam-nos como fragmentos, que a nossa mente não consegue cerzir, para lhes dar um fio lógico. Entretanto, somos de novo assaltados por um dilema bem Hollywoodesco: quem é que são os bons e os maus? Se há algo de pedagógico em Hollywood, é o terem-nos ensinado a tomar partido: de um lado estão os benfeitores, pelos quais torcemos, e do outro os malfeitores, sempre justamente punidos, no final do episódio. Mas Hollywood é uma indústria generosa, conduzindo-nos docemente ao lado dos justos. Agora, pelo contrário, vinga a indefinição. Se, por um lado, uns sustentam estas acções nas duras condições de vida, em que eram mantidos, outros, por seu turno, advogam tratar-se de violência gratuita, despojada de qualquer raiz na austeridade. Ai! Como detestamos a indefinição…E nós para aqui, no sofá, a agonizar neste leito de hermafroditismo social… Que paciência! Mas eis senão que chega, em sebastiânica aparição, o comentador televisivo. – Alvíssaras! – exclamamos em transe. O Sebastião observa-nos, atónito. Mas a reacção não é inoportuna: chegou a nossa mais estimada figura da informação portuguesa. Ele está pronto a mastigar-nos a matéria noticiosa – e a defecá-la até, se acharmos necessário – de forma a que não nos importunemos a processá-la; como é sublime o colorido, que os seus comentários categóricos emprestam à imprensa! Dúvidas, interrogações? Tudo é dissolvido num mar de imperturbáveis certezas. Atenção, acabou de surgir o veredicto: em Inglaterra, a violência é puramente gratuita. Terminada a leitura da sentença, recostamo-nos no sofá, com olhar prazenteiro. – Como é agradável escutar estes senhores – suspiramos. Desde que tínhamos começado a acompanhar os canais de notícias 24h, onde pontifica um comentador a cada dez minutos, já não necessitávamos de tomar os sais de fruto e mesmo o nosso mais velho, o Martim, à época atormentado por cólicas, pôde deixar de tomar as gotas, tamanho era o efeito terapêutico destes novos senhores da ladeira. Agora, retomemos ao nosso calvário interior, pois aqui estamos nós, enfim mergulhados na convicção de que aqueles gaiatos de Inglaterra não passavam de indigentes e milionários sádicos, em busca de ocupação. Ao sabê-lo, a nossa mente cristã, com baptizado, crisma e demais cerimónias da antologia festiva da religiosidade, começa a congeminar coisas das quais não nos orgulhamos, nem ousamos confessar aos nossos amigos, ainda que o nosso juízo seja bem claro: “Porrada neles!”. A polícia não é suficiente, chame-se o exército; os sublevados comunicam pelas redes sociais, sejam suspensas; os jovens têm demasiada liberdade, sejam-lhes controlados os passos; bandos organizados de cidadãos organizam-se em milícias populares, a fim de proteger os seus pertences? Que sejam armados, para restabelecer a ordem. O quê? Na sua maioria, esses indivíduos integram grupos de extrema-direita? Não nos recordamos de termos ouvido isso na televisão, é decerto especulação e é preciso conter esta onda de violência a todo o custo, pelo que os fins justificam os meios. Ainda na sala, depois de enunciarmos em surdina este punhado de soluções por atacado, levantamo-nos e dirigimo-nos, de novo, ao louceiro. Ao chegarmos junto dele, percorremo-lo com o olhar: séculos e séculos de porcelanas e cristais ordenados por cronologia e estilo. Durante o périplo pelas peças em exposição, o nosso olhar esbarra num reflexo e vemos o nosso rosto espelhado num açucareiro do século XIX. Gradualmente, o reflexo torna-se também interior, o nosso olhar torna-se vago e pomo-nos a reflectir: somos democratas, disso estamos certos. Não porque alguma vez tenhamos reflectido muito acerca disso. Na verdade, sempre nos conhecemos assim: estrutura mediana, cabelo liso, olhos castanhos… e democratas. Nunca sequer equacionámos aprofundar o conhecimento deste conceito. Que alternativas nos restavam? Mesmo nas festas da alta sociedade, nas quais, enquanto aguardamos pelo acepipe seguinte, cochichamos, sibilantemente, a estima pelos “tempos idos” já não é manifestada de forma explícita. Certa vez, recordamo-nos até de ter ouvido a seguinte admoestação, dada a um folião desconhecedor das novas terminologias do croquete: “Não diga isso, meu caro. Essa posição pode granjear-lhe muitas inimizades. Opte antes por liberal; ser liberal é fashion, ser fascista está démodé”. Memórias aparte, continuamos a afirmar: somos democratas. Quer dizer… Bem sabemos que não somos “democratas praticantes”. Mas, pelo menos, marcámos presença num ou outro sufrágio – aos do aborto, por exemplo, nunca faltámos, se bem que, em parte, por recomendação do prelado da nossa paróquia. Na nossa perspectiva, isto da democracia é como uma inscrição no ginásio: a início, estamos empolgados com a prática de exercício físico, em virtude do que somos presença assídua; mas, passadas algumas semanas, o afinco esmorece e, apesar de continuarmos a pagar a mensalidade, nunca mais lá voltamos, ou como se diz em democratês: engrossamos a taxa de abstenção. Ainda assim, mesmo após expormos os nossos vícios, professamos a nossa democraticidade. Estamos tão crédulos disto como o Sebastião está de a mãe ter enlouquecido a olhar para uma peça de mobiliário. No final deste exorcismo espiritual, temos de o levar de imediato ao psicólogo, ou nunca recuperará deste trauma. Findo este pensamento, o nosso olhar descai para uma manteigueira do século XVIII e damos, de novo, de caras com o maldito reflexo, uma espécie de agente cerâmico da ponderação. Olhemos para nós, façamo-lo atentamente. Na televisão, o primeiro-ministro britânico, James Cameron, aventou a hipótese de suspender as redes sociais, em tempos de crispação social, e nós não só anuímos, como achámos a ideia brilhante. Agora que reparamos, esta acção é uma enorme afronta para a liberdade expressão. Fez-se luz! E o multiculturalismo, fomos dele alguma vez partidários? Estamos agora conscientes de que não. – Querem vir para Europa, aculturem-se, rendam-se à sociedade superior. Não se adaptam, sejam arredados para os subúrbios, olhos que não vêem, coração que não sente. Quanto aos meninos de tenra idade, alguns vindos de famílias abastadas, o que é que temos a dizer? A princípio considerámo-los meramente mal-educados, não passavam de meninos ricos e ociosos, a libertar a sua rebeldia e, com efeito, o Estado nada tinha que ver com isso. Mas, mais uma vez, aquele reflexo fez-nos pensar de forma diferente. Só uma crise de valores profundamente instalada poderia dar tais frutos e nessa matéria o Estado tem responsabilidades, designadamente ao nível da educação. Ainda com o mesmo olhar vago, inteiramo-nos dos nossos juízos precipitados. O invólucro do medo distorceu-nos o discernimento e estimulou o que de mais promíscuo e decadente em nós existe. Passada esta conclusão, o nosso olhar continua a percorrer incessantemente as peças do louceiro. Neles, os reflexos sucedem-se, mas não nos reconhecemos em nenhum: temos a face coberta pela vergonha, pelo vexame de termos sido tão facilmente manipulados. Por fim, surge no nosso semblante um sorriso amarelo, acompanhado por um ligeiro contentamento: tirámos esta ilação sem recorrer a nenhum comentador televisivo. Pelo menos, somos originais!

No tapete, o Sebastião está entretido com os seus brinquedos. – Totó – grita, animadamente, empregando um adjectivo muito caro à pequenada, mas também a alguns adultos, que, por conservarem o espírito, o aplicam de modo magistral; e nós coramos, não porque o atributo nos seja dirigido: o totó é, provavelmente, um dos guerreiros de plástico do nosso menino, mas porque sabemos que somos o seu mais merecido destinatário.