O guevarismo Versão para impressão
Segunda, 31 Janeiro 2011

O Guevarismo

Che Guevara foi um dos grandes revolucionários do século XX, que deu um contributo importantíssimo a movimentos de libertação das garras colonialista e imperialistas das décadas de 60 e 70 (embora a sua influência se tenha prolongado).

Apesar da mistificação que existe à volta do médico que se tornou soldado em nome de ideais revolucionários socialistas, a necessidade de ir além do mito surge. E surge porque qualquer mito impede as pessoas de terem um olhar crítico e de questionamento sobre o mito em questão.

E é isso que se pretende com este artigo, indo mais a fundo na produção teórica de Che Guevara, que mesmo não sendo muito extensa, nos permite caracterizar o guevarismo e as oposições ou diferenças face ao socialismo soviético que era dominante na altura. Também percebemos que o contexto em que Che escreve muitos dos seus artigos é importante para analisarmos com maior exactidão as suas visões sobre o marxismo.

Assim, Che estava convencido, acima de tudo, de três questões fundamentais: a Reforma Agrária era o centro de qualquer tentativa de os países conseguirem vencer o subdesenvolvimento, articulada com a democratização política, económica e social; as mudanças a favor dos mais explorados enfrentariam, a qualquer momento, os EUA, a cabeça do sistema imperialista que se tentava difundir por todo o globo; por fim, acreditava na direcção política forte que não tivesse receio de armar o povo e, até de um conflito bélico, se assim fosse exigido pela transformação social.

Ora, estas preocupações de Che evidenciam bem a época que se vivia e também algumas das caracterísitcas do guevarismo: o recurso à guerrilha, se tal fosse necessário para alcançar a revolução socialista, o inimigo bem definido, o imperialismo, materializado nos EUA, e a importância dada à Reforma Agrária.

O que é, então, o guevarismo?

Este é entendido como um conjunto de conceitos de origem marxista que tem o seu enfoque na mudança social e a preferência pela luta armada. Mas isto é generalista; se estudarmos mais profundamente o pensamento de Che Guevara (maioritariamente encontrado em artigos que ele escreveu na altura, discursos proferidos, o seu diário, cartas, pois não existe uma obra teórica compilada a que se possa chamar “teoria guevarista”) descobrimos que há características muito próprias.

 

Elementos fundamentais do guevarismo

O guevarismo bebe muito da teoria de Marx, à semelhança de praticamente todas as formulações teóricas socialistas e/ou comunistas. Ora, para Che, o papel de Marx consistiu em construir uma teoria e prática políticas de reunir conhecimento da realidade, juntamente com a sua transformação. Assim, Marx teve a capacidade de conhecer e interpretar a História (o chamado materialismo dialéctico), detectando conflitos sociais e lançando políticas alternativas numa perspectiva transformadora.

De facto, para Che, a Revolução Cubana teria retomado Marx na fronteira da teoria com a prática, afirmando que “(n)ós, revolucionários práticos, iniciando a nossa luta, simplesmente cumprimos leis previstas pelo Marx cientista” (GUEVARA, 1985, IV, 204). É aquilo a que se pode chamar de marxismo aberto, combatendo dogmatismos e afastando-se dos manuais para passar à acção, que utiliza o materialismo dialéctico como arma.

Neste ponto, há que ter em conta que esta concepção marxista de Che é fortemente influenciada pela situação muito própria da Revolução Cubana, podendo por vezes fugir daquilo que Marx considerava ser a revolução social, onde é a sociedade que procura construir um novo Estado, onde a luta armada só surgirá em última instância.

Ora, este tipo de marxismo, o guevarismo, que é aberto e recusa mecanicismos e ideias fossilizadas tem o seu antecedente em Lukacs, Gramsci e Bloch, que apresentaram o “marxismo de subjectividade ou cálido” como um modelo que apresentava três soluções para o marxismo dogmático da II Internacional: uma saída equilibrada entre o jogo de factores objectivos e subjectivos[i] que se encontram nos processos revolucionários, unir os pressupostos científicos de Marx com a vontade revolucionário do proletariado e a advogação do predomínio do factor subjectivo como elemento determinante no processo revolucionário.

De facto, em mais do que um dos seus escritos, Che reforça a importância da tensão entre estes dois factores, dando sempre mais importância aos subjectivos. Isto acontece porque o indivíduo é visto como um protagonista nos processos de transformação social, capaz de se libertar da alienação e das contradições das leis do valor e do capitalismo[ii]. Por outro lado, o factor subjectivo é importante porque o socialismo não surge espontaneamente da conquista do poder político, é, antes, consciente e planeado; por último, é necessário à reprodução da sociedade socialista indivíduos que sejam capazes de lutar contras as formas subtis de alienação capitalista e consigam transformar-se a si mesmas e, mais importante, à sociedade. [iii]

Outro elemento fundamental do guevarismo, era a comparação entre as teorias sobre revolução de Marx e Lenine; enquanto o primeiro mostrara que o capitalismo tenderia a desaparecer e dar lugar ao socialismo (acreditava ser um processo histórico natural), o segundo chegara à conclusão que esta passagem poderia ser acelerada por determinados catalizadores: um forte partido de vanguarda (para Che, um partido marxista-leninista que se molde às especificidades de Cuba) e a consciência de massas.

Um outro aspecto fundamenal do guevarismo, e que, na altura, o distanciou do comunismo soviético, é a dura crítica à burocracia que ele via crescer em países como a URSS de forma alarmante. Para tal, e como quase sempre, Che parte da experiência da Revolução Cubana, cuja administração estatal era influenciada pelo movimento guerrilheiro que esteve na sua origem, rejeitando a alta burocratização da URSS. Contudo mais tarde teve de ser adoptada pela aparelho estatal cubano uma certa ordem, onde não fosse pura e simplesmente o livre arbítrio dos dirigentes a definir a estratégia política e revolucionária, mas que passasse a existir uma planificação semelhante à de outros países socialistas.

Ora, a burocracia acabou por também chegar ao aparelho estatal cubano, embora acompanhado de falta de quadros qualificados e da falta de espírito da revolução, bem como da escassez de métodos de controlo. Para Che, a burocracia não nasce com a sociedade socialista, como algo inerente a ela, já que ela também existia nos regimes burgueses.

Não sendo algo inerente a um regime socialista, a burocracia podia ser eliminada, desde que se conhecessem as suas causas e efeitos, de forma a se poderem construir formas de a fazer desaparecer: agilização do aparelho estatal, produção sem entraves e responsabilidade pela produção. Este trabalho não é, no entanto exclusivo de organismos dirigente do Partido, mas também dos organismos económicos e das massas, ressalvando sempre uma relação saudável entre planeamento e democracia.

O internacionalismo é, talvez, um dos elementos mais importantes quando se fala em guevarismo, já que ele sempre idealizou a luta contra o imperialismo (qualquer que fosse a sua índole) como necessário não só para Cuba ou para a América Latina, mas para todo o mundo. E as suas acções demonstram-no mais do que os seus escritos, pois não se manteve numa posição relativamente fácil que havia adquirido em Cuba, mas foi para o Congo e Bolívia (onde encontraria a sua morte) para ajudar a formar grupos guerrilheiros para combater regimes opressores, marionetas da sede de poder dos EUA pelo mundo fora.

O internacionalismo era, para Che, uma tradução da bandeira da dignidade, além de uma necessidade.estratégica. Foi, aliás, um dos motivos que também o distanciou da URSS, pois ele denotava uma cedência desta a uma certa forma de imperialismo (mais visível, talvez, no Terceiro Mundo).[iv] Che também não acreditava que o socialismo se pudesse construir apenas num país, mas teria que ser internacional, com a união de todos os proletários do mundo, que se sublevam contra as amarras capitalistas e autoritárias que os possam prender.

Não podemos falar de guevarismo sem falarmos da dimensão ética que Che Guevara imprimiu ao marxismo, algo que está implícito em todos os aspectos falados anteriormente.

 

Actualidade: que guevarismo hoje em dia?

Hoje em dia, a imagem de Che, o revolucionário, está difundida pelo mundo fora e serve como modelo para muitos jovens. As suas acções, o ideal que representava, tudo isso pode considerar-se actual numa altura em que a necessidade de lutar contra o imperialismo e contra o capitalismo que nos tolda o movimento e pensamento voltou a surgir com força.

Apesar disso, não consideramos que o guevarismo enquanto elaboração teórica marxista seja algo em que sequer se pense muito. Como já foi referido, a mistificação de pessoas ou ideias impede-nos de sermos rigorosos na sua análise e, muitas vezes, fazem-nos nem sequer pensar nessa mesma análise. Além disso, o guevarismo foi muito construído com base no contexto da Revolução Cubana e Guerra Fria; logo, o guevarismo só pode ser pensado, hoje em dia, se for actualizado à realidade dos nossos dias, às dificuldades que vivemos actualmente.

O mito vai subsistir, o Che será sempre um ícone revolucionário; mas a revolução também passa pela criação de novos modelos, adaptados ao momento e, de preferência, com visão para o futuro. Devemos utilizar o seu internacionalismo para pensar num que se adapte às novas relações laborais, ao proletariado existente, com as profissões liberais, o que era rejeitado no Guevarismo, devemos rejeitar dogmatismos e purismos de esquerda, pois estes levam à burocratização e, em última análise, à imobilização de qualquer movimento que se diga revolucionário.

Há sobretudo que salientar que, actualmente, a guerrilha não faz parte da solução para a defesa do proletariado, e este tem de utilizar outras armas para se defender do capitalismo, através de um socialismo efectivo e pragmático contra os sucessivos ataques da burguesia, que procura agora novas formas de atacar o proletariado.

Há que reciclar os pontos mais positivos do guevarismo e continuar a construção de um movimento de esquerda revolucionária que crie as condições subjectivas (a consciência do povo) para mudar o rumo da história e construir o caminho para uma sociedade socialista.

Isabel Pires e Diogo Barbosa 



[i] Entenda-se por factores objectivos de um processo revolucionário a situação mais “visível” e real da situação das populações num determinado momento que antecedem o início do processo revolucionário (condições económicas, sociais, etc). Por factores subjectivos deve entender-se as condições subjacentes ao indíviduo e, num outro grau, à população em geral (a predisposição ou não para apoiar um movimento revolucionário, a consciência). Para Che estes últimos eram de extrema importância e era construídos pela guerrilha, através da consciencialização das populações (utilizando a experiência da Revolução Cubana)

[ii] Assunto por ele tratado no artigo “Sobre la concepción del valor. Contestando algunas afirmaciones sobre el tema”, publicado na Revista Nuestra Industria Economica, Outubro 1963.

[iii] Para Che, a subjectividade é entendida como “consciência socialista”.

[iv] Sobre o internacionalismo como factor de cisão com a URSS ver o “Discurso de Argel”, Fevereiro de 1965