O crime com marca de género Versão para impressão
Terça, 14 Dezembro 2010

Colou-se um rótulo a Portugal: “País de brandos costumes”. De facto, Portugal, comparado com outros países da Europa e do Mundo tem níveis de criminalidade muito baixos. E sempre que existe um “pico” de assaltos a postos de gasolina, a ourivesarias, clama-se por mais segurança, mais polícia.

A direita aproveita, demagogicamente, o sentimento de insegurança e de vitimização das populações para clamar por um sistema mais musculado e mais policiado. Serve os seus objectivos políticos. Uma sociedade mais policiada é uma sociedade mais contida, mais controlada. A autoridade, como valor absoluto, não questionável, serve a direita e a aplicação das suas políticas.

Mas a segurança das pessoas está ligada à liberdade das pessoas. Só as pessoas livres podem viver em segurança.

Mas Portugal tem ou não problemas de segurança? A criminalidade aumenta ou não?

Temos um problema de segurança bem determinado e que tem uma classificação: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.

O homicídio é o crime mais grave contra as pessoas. Não há crime, em Portugal, que mate mais que a violência doméstica. A violência doméstica é o segundo crime mais denunciado às forças de segurança, sendo que o primeiro são ofensas à ”integridade física simples”.

Este ano, já foram assassinadas 39 mulheres e 37 foram vítimas de tentativa de homicídio. Ou seja, as 37 não morreram por mero acaso, porque tentaram matá-las. Portanto poderíamos estar a falar de 76 vítimas mortais do mesmo crime.

Mas os jornais, recentemente, noticiavam mais um homicídio. Morta à facada no local de trabalho. A situação de violência doméstica era conhecida, inclusive era conhecida da PSP, que já tinha recebido queixas. Portanto agora já são 40 as mulheres assassinadas e, infelizmente, quando este artigo for publicado, os números poderão já estar desactualizados.

Façamos as contas:

Este ano houve 2 tentativas de homicídio a mulheres, por parte de maridos, companheiros ou namorados por semana. Parte deles (40) foram consumados, outros deixarão marcas irreversíveis nas vítimas, nos filhos e filhas, na família, nos amigos. O mais certo é implicarem mudanças radicais na vida das vítimas, têm que fugir, disfarçar-se, mudar de terra e muitas vezes de país, recomeçar de novo, sendo que o “novo” nestes casos tem um sabor demasiado amargo.

Só numa semana, no início de Agosto, verificaram-se 4 homicídios em dias seguidos. Segunda, terça, Quarta e Quinta-feira.

É fácil de imaginar o que aconteceria se, em assaltos consecutivos, tivessem sido vitimadas 4 pessoas na mesma semana…

Então porque não existe um clamor nacional contra o assassinato de mulheres, autênticos homicídios em série? Porque não se clama por mais segurança? Porque é que o Ministro da Administração Interna não tem nada a dizer ao país? Porque é que a direita está calada, enquanto as mulheres morrem?

O crime de violência doméstica é um crime praticado na intimidade, é um crime que tem a ver a com a liberdade das pessoas, mais concretamente com a liberdade das mulheres, com os seus direitos, com o reconhecimento da igualdade entre mulheres e homens. Não é um crime banal e meramente passional. É mais do que isso. Não é um crime cometido “num momento de loucura”, é crime planeado, perpetrado durante anos que visa retirar toda a autonomia à vítima, despojá-la do “seu poder”, torná-la objecto. É um crime ligado ao exercício do poder dos homens sobre as mulheres.

E esse poder é exercido durante anos através da chantagem, da humilhação, da incerteza daquilo que acontecerá no minuto seguinte, da destruição da personalidade. As características destes agressores são conhecidas – na esmagadora maioria dos casos só agridem dentro de casa, são até muito bem vistos. Basta ver as reportagens, em que muitas vezes aparecem os vizinhos a comentar a desgraça e a dizer que nada levava a pensar que aquilo fosse acontecer.

Mas as denúncias têm aumentado. Ainda bem. É sinal de que as vítimas (mulheres) têm mais consciência dos seus direitos, acreditam mais na protecção do sistema. E daí, que a severidade da violência, chegando até ao homicídio também aumenta.

Está mais que demonstrado que os momentos mais críticos de um processo de violência doméstica são quando o agressor se apercebe que a vítima o vai denunciar e imediatamente após essa denúncia. Um número significativo dos homicídios verificados este ano aconteceu após a apresentação de denúncia. Não pode haver um polícia atrás de cada mulher, mas tem que haver mecanismos de segurança para as mulheres que apresentam queixa.

Muito se tem feito sobre esta matéria, a nível legislativo, a nível de protecção das vítimas, ao nível de formação das forças de segurança. A acusação, vinda da parte do Governo, de que insistir na denúncia deste crime, é não reconhecer os avanços, é patética. Até porque temos sido parte da solução e parte empenhada.

Mas, é preciso dizer, muito pouco se tem feito ao nível dos Tribunais. Um estudo apresentado pela Associação Portuguesa de Mulheres Juristas aponta que um terço dos agressores é absolvido. Um número significativo de processos não chega ao fim, noutros a prova é insuficiente, noutros são penas suspensas, noutros são anos e anos em Tribunal, levando as vítimas a desejarem um fim, qualquer que ele seja, desgastadas e desmoralizadas. E ainda as situações das decisões contraditórias entre o processo crime e os processos cíveis, como é o caso da guarda dos filhos e filhas. Em resumo, a violência doméstica é um crime impune.

 Estamos perante um novo patamar no combate à violência doméstica. A ligação directa da violência doméstica com o homicídio coloca novas exigências de prevenção e protecção. Implica uma prioridade absoluta no combate a este crime e responsabiliza directamente as autoridades policiais. Se uma mulher apresenta queixa e é assassinada depois, algo está a falhar na segurança. E tem que haver responsáveis.

Exige-se uma estratégia de segurança a nível nacional, dotada dos meios necessários para protecção das vítimas. Exige-se especialização e rapidez na actuação dos Tribunais no sentido de serem aplicadas medidas de coacção eficazes aos agressores sinalizados. Só existem 50 pulseiras electrónicas para manter afastado o agressor da vítima, mas muitas estão por utilizar. Porquê? Estamos à espera de fechar o ano com quantas mortes?

Também aqui ficam absolutamente claras as opções do Governo: aquisição de 6 blindados, cuja utilidade ninguém percebe, incluindo a própria PSP, que não sabe para que se destinam, mas não se conhece nem estratégia, nem reforço de policiamento, nem reforço da protecção das vítimas do crime que mais mata em Portugal.

A violência doméstica deixou de ser tabu, deixou de ser assunto “pessoal”, porque durante anos e anos feministas de esquerda lutaram pela sua visibilidade, argumentaram, fizeram propostas e, pelos seus próprios meios inauguraram os sistema de atendimento, apoio e acolhimento das vítimas e dos seus filhos e filhas. Obrigaram o Estado a reconhecer o seu trabalho e a apoiá-lo.

No ano 2000, por proposta do Bloco de Esquerda a violência doméstica foi considerada crime público. Despoletou-se um conjunto de meios, de campanhas. As coisas mudaram efectivamente.

Por isso mesmo, 10 anos passados, não nos conformamos com os resultados – 40 mortes até agora.

Temos um problema de segurança muito grave no nosso país. Tem marca de género e chama-se violência doméstica.

Helena Pinto