Depois da Crise: Acumulação e exploração são o objectivo Versão para impressão
Sábado, 16 Outubro 2010

Depois da crise que se espalhou com o estoiro da bolha financeira, o grande capital – financeiro, em primeira instância – tomou para si a necessidade de um acto de contrição. Ou melhor, palavras de contrição, pois a distância das palavras à acção não chegou a ser percorrida.

Lágrimas de crocodilo

Com a necessidade de se distanciar da crise e das suas consequências, o capital ensaia um discurso que pretende colar a crise aos maus capitalistas, desfazendo a ligação entre o efeito (crise) e a causa (modelo capitalista). Individualiza a culpa, ilibando o sistema. Disse-se então que era necessária mais regulação, impor regras à circulação do capital financeiro, fiscalizar os produtos financeiros vendidos em pacotes impregnados de toxicidade. Os estados correram atrás do discurso, e acenaram mesmo com a necessidade de combater os off-shores.

Vivíamos uma altura em que era preciso que se recuperasse a confiança da população para com o sistema capitalista, para com a infra-estrutura. A burguesia temia ficar exposta àquilo que realmente produzira: especulação, capital fictício que apenas proporcionou concentração de poder e dinheiro em alguns poucos. Temia a sua falência e a contestação social ao seu modelo de acumulação e exploração.

Mais, queria com este “acto” de contrição poder criar o terreno para que os estados interviessem em seu auxílio. E assim fizeram, não apenas porque havia um sistema financeiro exposto à sua própria fraude; não porque ameaçava ruir, mas porque os governos esgrimem e protegem interesses de classe. Seria impossível que permitissem a derrocada da sua própria classe. Já quando, posteriormente, foi a crise social a instalar-se, a resposta dos governos foi a da  austeridade, a retirada de salário e de prestações sociais... Estava, naturalmente, em jogo já uma outra classe...

E assim, salvou-se o capital financeiro. Determinados e sem tergiversar, estados, bancos centrais e organismos internacionais injectaram milhares de milhões de dólares e euros no buraco financeiro. A meio do caminho desta operação de salvamento perderam-se, algures, as promessas de regulação, de limitação da circulação de capitais, de encerramento dos off-shores... Restou, no final da operação, os défices dos países que os mesmos estados, bancos centrais e organismos internacionais querem combater de imediato à custa do abaixamento do valor do trabalho, à custa do sobretrabalho, à custa do Estado Social e dos direitos laborais.

Não nos enganemos, a crise financeira foi real. Não vale a pena dissecar, aqui, as razões da mesma, mas aconteceu! Como seria previsível contaminou a indústria e o mercado de trabalho, transformou-se em crise económica e social e em desemprego. Sabendo que o capital financeiro (junção do capital bancário e do capital comercial) se interliga a todo o momento com o capital industrial, seria fácil perceber que a crise financeira se traduziria em concentração de capital, o mesmo é dizer que se traduziria em falências e desemprego generalizado.

Não nos enganemos, era necessário actuar sobre a crise financeira que se estava a desenvolver e a expandir. Principalmente, porque esta já não era apenas crise no capital financeiro; já era uma crise destruidora do tecido produtivo, com consequências desastrosas para o proletariado, que vê destruído o seu posto de trabalho Como lembra Marx, o proletariado é a classe que em qualquer momento ou situação social (retrocesso económico, progresso económico ou situação plena) está sempre a braços com uma situação potencial de miséria(1). No entanto, a situação de retrocesso é aquela que traz ao proletariado a miséria progressiva e o maior sofrimento, porque aumenta o desemprego; com o aumento do desemprego aumenta a mão-de-obra disponível; com o aumento da mão-de-obra disponível aumenta a competitividade entre os trabalhadores e favorece-se o abaixamento do salário daqueles que ainda conseguem um posto de trabalho. A força e o poder ficam cada vez mais do lado da burguesia, uma vez que “o operário não tem apenas que lutar pelos seus meios de vida físicos, tem que lutar pela aquisição do trabalho”(2). Não actuar sobre a crise que se desenvolvia seria mais devastador para o proletariado do que para a burguesia.

Não nos enganemos ainda em relação ao momento actual. Existe efectivamente um problema de finanças nos países: os défices são altos e a especulação lançada sobre esses défices tornam difíceis as aquisições de empréstimos por parte dos bancos e dos países. Se os défices em si não lançariam os países numa potencial situação de incumprimento, o ataque especulativo sobre os défices, esses sim, podem concretizar esses mesmos incumprimentos. O ataque especulativo a que assistimos é a revanche capitalista sobre os estados, meses depois de terem sido os estados a salvaram o sistema financeiro.

Mas, ao mesmo tempo que não nos podemos enganar na observação da situação, também não nos podemos deixar enganar com a mesma. É mais do que evidente que às costas da crise financeira, às costas das medidas para aplacar essa crise e, agora, às costas da pressão sobre os défices, se desenha uma política de classe que pretende lançar um enorme ataque às conquistas alcançadas pelo proletariado no período pós-guerra.

A burguesia e o plano liberal pretende, às custas da euro-crise, justificar uma investida contra os direitos laborais e contra o salário – directo e indirecto. Objectivo: aumentar a exploração, tornar o trabalho mais barato e reduzir ainda mais o trabalhador a uma mercadoria, a um valor de troca que, trabalhando mais barato, permite a apropriação de um maior montante de capital por parte da burguesia que o explora.

A burguesia e o plano liberal pretende usar o défice e a crise financeira como pretexto para decepar o Estado Social e arranjar novos mercados de realização de mais-valia. Onde? Com as privatizações de uma série de serviços e/ou posições dos Estados em sectores estratégicos e que são monopólios por natureza. Resultado: lucro sem limite.

E como triunfa a burguesia das crises?

A espiral especulativa a que assistimos nos últimos meses tem contornos de revanche ideológica. A derrota ideológica do neoliberalismo deu-se quando os estados foram chamados a salvar os bancos. Todo o primado do mercado ficou colocado em causa perante a inegável vertigem gananciosa que ficou exposta aos olhos de todo o mundo. E maior vergonha não podia ter existido perante o reconhecimento de que era nos estados que se encontravam as saídas para a crise financeira. Mas, a factura do pagamento desta crise abriu várias feridas nas contas dos estados. Em primeiro lugar, porque se tratou de somas gigantescas de dinheiro que os estados disponibilizaram à banca. Em segundo lugar, porque a passagem da crise financeira a crise económica trouxe consigo uma enorme redução de receitas. E os défices públicos ficaram ainda mais fragilizados.

A crise financeira evoluiu para crise económica e social. Mas, se aos trabalhadores e à economia ainda não se vislumbra a saída da crise, a banca encontrou um balão de ar nos apoios públicos que foram dados. E, como seria expectável, mostrou novamente as suas garras… A percepção das fragilidades das contas públicas abriu um novo capítulo desta crise, pois potenciou novas formas de usurpação. A especulação sobre os riscos de incumprimento das obrigações dos estados do sul da Europa resultou numa espiral especulativa. Essa espiral especulativa aumentou a desconfiança e, consequentemente, o risco de incumprimento. E, assim, foi criado um ciclo vicioso onde o discurso da crise foi aumentando de volume, mas, desta feita, com a mudança de protagonistas.

Em poucos meses, os estados que foram a bóia de salvação do início da crise passaram a ser os condenados em praça pública. E, curiosamente, o Banco Central Europeu (BCE), que foi tão lesto a emprestar quantias obscenas de dinheiro aos bancos quando estes se encontravam em dificuldades, recusa-se a emprestar dinheiro aos estados.

O exemplo grego é demonstrativo deste novo fôlego da banca. A dívida pública grega era devida, em grande parte, à banca alemã. Escusado será dizer que esta dívida foi contraída pela existência de negócios em que o povo grego foi claramente prejudicado. Relembra-se, para exemplo, que uma parte relevante da dívida decorreu da compra de material militar a empresas alemãs. Contudo, mal a banca alemã se refez do abalo sofrido em 2008, logo a pressão sobre as contas públicas gregas subiu de tom. E os estados, que colocaram fortunas imensas na banca em apuros, foram novamente chamados a pagar, agora sob a forma de empréstimo à Grécia. E foi sobre a Grécia e a dívida pública que detinha, que começou esta nova fase da crise. A dívida grega era (e é) detida, em grande parte, por bancos alemães e franceses. Como veremos adiante, foram os mesmos bancos que beneficiaram bastante com a resposta à especulação.

A especulação que existe sobre as dívidas dos estados, como facilmente se percebe, é uma forma de justificar as taxas de juro mais elevadas que as instâncias internacionais estão a praticar. E esse foi o negócio realizado durante algumas semanas, até que o ruído criado pela especulação atingiu valores impensáveis. A partir daí, imperou a desconfiança total sobre as dívidas públicas e os empréstimos aos estados, particularmente aos do sul da Europa, deixaram de ser viabilizados. Este é o patamar máximo da espiral especulativa: se não houver empréstimos aos estados para realizarem os pagamentos que vão vencendo, é claro que os pagamentos não serão realizados. Nesta fase, quando se esperava uma mudança de política do BCE que cortasse o mal pela raiz realizando empréstimos aos estados, assistiu-se à criação de um novo patamar de usura.

A compra directa da dívida pública por parte do BCE permitiria o financiamento dos estados com juros reduzidos e resultava numa diminuição do peso dos encargos nas contas dos estados. Contudo, a posição intransigente do BCE é a de não ter qualquer relacionamento directo com os estados. Assim, apesar do BCE garantir a compra da dívida pública, não o faz directamente. A criação de intermediários para essa compra favorece apenas a banca que, por essa intermediação, se cobra principescamente.

A resposta da Europa à especulação externa é a criação de novos focos de especulação no seio da própria União, deixando bem à mostra a crueldade do capitalismo.

Podemos dizer que esta é uma forma de reacção à crise já prevista por Marx: “E como triunfa a burguesia das crises? Por um lado, pela aniquilação forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados”(3). O novo mercado que foi criado de imediato é o da venda de dívida pública ao BCE. É um negócio garantido à partida e, por isso, permite a usura que o capital tanto agradece.

Assim se compreende como é que, de um momento para o outro, a dívida pública portuguesa passou de pouco aconselhável a extremamente apetecível. É assim que se explica o interesse que a banca alemã teve na compra de dívida pública portuguesa. Mas, este não é um negócio especificamente alemão ou francês. É um negócio para todo o capital, até o português. A dificuldade que a banca portuguesa teve em ser financiada por congéneres estrangeiras, já foi solucionada pelos banqueiros portugueses. Daí decorre o enorme aumento da exposição da banca nacional à dívida pública portuguesa nos últimos meses. E, para exemplificar o patamar da usura existente, o Estado português pagou juros superiores a 5% pelo último empréstimo quando a banca pagou ao BCE apenas 1% pelo mesmo dinheiro.

A disputa ideológica da crise

O mecanismo de criação e resposta à crise especulativa já foi referido. Agora, analisaremos qual o objectivo político de fundo que ficou em aberto com a crise especulativa. A crise financeira colocou os holofotes sobre a falta de regulação e sobre a ganância do capital. O mercado foi salvo pelos estados e ficaram expostas as fragilidades da regulação existente. O campo da disputa ideológica surgiu modificado pois a percepção popular era a de que, afinal, a existência de um Estado não só era necessária, como garantiu que o sistema financeiro não colapsasse. A crise especulativa procura a mudança do eixo do debate para o despesismo do Estado. Este é o contra-ataque ideológico do capital, escondendo e procurando fazer esquecer a derrota ideológica do neoliberalismo vivida em 2008.

Um dos pais do neoliberalismo já dizia que “só uma crise – real ou percepcionada - produz verdadeiras mudanças”(4). A frase apresentada permite analisarmos o comportamento capitalista de fundo nos últimos dois anos. Primeiro, porque coloca a existência da crise em dois patamares diferentes: um decorrente da realidade e outro decorrente da promoção da ideia da crise; Segundo, porque indica que a consequência de uma crise é a criação de mudanças.

A análise sobre a materialidade das crises já foi sendo referida ao longo do texto: a crise financeira foi real e, não tendo existido a rede de segurança que os estados criaram para a banca, os resultados seriam demolidores para o sistema financeiro, para o sistema produtivo e para o proletariado, em última análise.

A existência da crise foi tão indesmentível que as promessas decorrentes da resposta à crise foram de profunda alteração do modelo de regulação financeira. A moralização do sector foi abundantemente difundida e o comprometimento dos governantes com esse fim foi quase unânime. Não fosse incontornável esta crise financeira e nunca teríamos os estados, instrumentos de dominação da classe dominante, exigindo mudanças comportamentais a essa mesma classe.

A análise sobre a crise especulativa já entra no segundo modelo de crise. Não é uma crise dos estados, pois foi criada pela acção especulativa capitalista. Logo, não é uma crise real, mas forçada pelos interesses de dominação capitalista. Mas, se é uma crise artificial, criada pela acção do capital e difundida ad nauseum para que fosse percepcionada por todos, com que objectivos foi criada?

Com dois propósitos complementares: em primeiro lugar, fazer esquecer os responsáveis pela crise financeira e incumprimento das promessas realizadas; em segundo lugar para criar um novo culpado que permita a adopção de medidas que aumentem a taxa de exploração do capital e a criação de novos métodos de acumulação. E assim aparece novamente diabolizado o Estado na sua componente social, bem como os direitos que foram adquiridos ao longo de um século de lutas; e assim se compreendem as medidas apresentadas para o combate à crise.

As respostas à crise que são apresentadas não visam impedir que novas crises similares aconteçam. Assim fosse, e, pelo menos, as medidas de reforço da regulação financeira teriam de ser intransigentemente levadas à prática. As respostas à crise têm um carácter ideológico que visam cumprir o velho sonho capitalista: desmembrar o Estado Social, criando novas formas de parasitagem capitalista, e retirar direitos aos trabalhadores.

O burguês e o seu projecto liberal municia-se do idealismo, hoje e sempre, para tentar justificar as suas acções, ainda que a sua pretensão seja bem materialista: a da maior acumulação e exploração, a da maior apropriação dos lucros do trabalho feito por outros. “O idealismo mais não é do que o disfarce insensato e destituído de escrúpulo de um repugnante materialismo” (5).

Nós já temos o discurso idealista dos dias de hoje: em virtude da necessidade de combate ao défice é preciso adoptar planos de austeridade para garantir a liquidez dos países e para proteger as pessoas dentro desses países. Dizem eles. Mas o que o burguês quer mesmo dizer é que depois da crise financeira precisa de uma série de medidas para acumulação de riqueza. Daí o congelamento de salários, os cortes nas prestações sociais e o abaixamento dos direitos laborais; daí a agiotagem nos empréstimos a países em apuros, como a Grécia. As medidas que estão a ser adoptadas sob o nome de medidas de austeridade são, na verdade, medidas recessivas. Por um lado, prolongarão a crise ao atacar o poder de compra e o consumo; por outro lado, acrescentando liberalismo a uma crise criada pelo liberalismo, querem retirar da alçada dos estados uma série de sectores estratégicos ao mesmo tempo que querem diminuir o peso do estado na economia. Resultado? Menor capacidade, por parte dos estados, para prevenir novas e reforçadas crises no futuro.

Mas então porquê a aplicação de tais medidas? Já vimos que o liberalismo vê a crise como um momento para a condução de mudanças. E já vimos que a burguesia triunfa das crises “pela aniquilação forçada de uma massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais profunda de antigos mercados”(3). 

O que pretende hoje o burguês saído da crise financeira que ele próprio provocou? Aproveitar a crise para concretizar aquilo que o plano liberal sempre quis concretizar: acabar com o que resta do modelo social europeu; liberalizar os despedimentos e mexer nos direitos laborais, baixar o preço do trabalho e baixar o salário, explorar novos mercados, monopólios e sectores que estão sob a alçada dos estados. Como pretende fazê-lo? Especulando financeira, política e ideologicamente sobre os défices dos países para se arrogar de uma solução: planos de austeridade e emagrecimento do Estado.

Já vimos que os défices existem, mas que a intenção do liberal-burguês é a de fazer destes uma crise percepcionada, pretexto para reclamar todo o liberalismo, toda a acumulação, toda a exploração. O que o liberal-burguês está mesmo a querer dizer quando afirma a necessidade de um PEC é que ele tem a necessidade desse mesmo PEC. Não são os países ou os trabalhadores. É ele. Pois este é o tempo para acabar de vez com o modelo social europeu, libertando para o privado uma série de monopólios naturais que deveriam ser públicos ou uma série de serviços altamente apetecíveis, como a saúde. Por detrás do PEC está a acumulação e a maximização da taxa de exploração.

Moisés Ferreira e Pedro Filipe Soares

Notas:

(1) Marx, Karl (1994). Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844. Editorial Avante

(2) op. cit. pp.

(3) Marx, Karl & Engels, Friedrich. (1997). Manifesto do Partido Comunista. Editorial Avante.

(4) Friedman, Milton (2002). Capitalism and Freedom. The University of Chicago Press

(5) Marx, Karl. (2009). Crítica do Nacionalismo Económico. Antígona. p.66