A semente do desastre Versão para impressão
Sábado, 16 Outubro 2010

António Vitorino, ex-comissário europeu e uma espécie de tutor do PS, respondeu em entrevista de Teresa de Sousa, in Publico 11/06/10, acerca da situação europeia, entrevista essa que não pode ficar sem reparo. Em abono do entrevistado, registe-se o desassombro das posições. É, aliás, estranho que as reflexões emitidas não tenham tido, depois disso, reacções pelos media.

E o que afirma Vitorino? Que se vive “a maior crise transversal da União Europeia (…) acelerando algo que já vinha de trás e que era uma perda de poder e peso relativo, mesmo do ponto de vista económico e não apenas do ponto de vista da sua influência politica mundial, que se traduz numa perda global de competitividade europeia”. Isto é, confirma a análise de que a UE é o elo fraco do sistema imperialista global e prenuncia até que há “potências emergentes” que em “10 ou 15 anos se afirmarão como os centros da decisão económica e política do mundo”. Pelos visto, perigando o papel de supremacia dos EUA…

A.V. apresenta uma linha de saída: “governo económico” sob a chefia da Alemanha, e corte severo no modelo social europeu. “Creio que a Alemanha não vai deixar de perceber que a Europa representa um valor acrescentado para o seu interesse nacional”, diz o entrevistado. Afirma, com valor reforçado, “a minha convicção profunda é que o interesse nacional alemão continua a jogar-se a prazo essencialmente na sua capacidade de liderança europeia”.

Qual a paga de “tanta” liderança germânica? A conclusão de que “as condições económicas em que somos chamados a actuar no mundo global vão obrigar a algumas decisões dolorosas quanto ao perfil do modelo social europeu”. A redução brutal dos direitos sociais, deseja Vitorino, devia ser “capitaneado politicamente” para ser assumido por todos e não apenas pelas “elites”.

Fantástico! Acreditará alguém num processo político em que os países são peças da máquina germânica e ainda aplaudem por ficarem mais pobres, quer os estados mais fracos, quer as populações mais vulneráveis dos vinte e sete?

Dir-se-á que o pragmatismo é rasteiro e rastejante. O PS de hoje, mal esquecido do apregoado projecto europeu de progresso que foi a bandeira da classe dominante nos últimos trinta anos, quer dizer-nos que do mal o menos… Porém, o menos com que nos brindam é o neo-liberalismo desenfreado quanto aos mercados, aos estados e aos direitos fundamentais das pessoas. O menos com que se resigna é apenas uma versão bismarckiana do continente, e um sistema de democracia tornada exígua. Como não podem substituir o cidadão por um piloto automático, a luta social vai emergir em confronto com essa via prussiana. Antevêem-se tempos de erosão da representação política e da escolha soberana. E não é difícil antecipá-lo. Tempos de afrontamento ao modelo democrático mínimo que sedeia o poder numa assembleia e não num quartel. Coisas de “pormenor” não foram desocultadas na entrevista de Vitorino. Claro, que esse esquema de Europa a que ele se ajusta não inclui a Grã-Bretanha, e pressupõe a colaboração subalterna de França, o castigo e regime especial para a Itália. Coisa pouca…!

“É a vida” dirá o estratega, a globalização fá-lo-á a bem ou a mal, assim se confie no mais recente “finalismo”… A da fatalidade da globalização imperialista.

É curioso e paradoxal que Jürgen Habermas, pensador europeísta há tantos anos, reclamado pelos sociais-democratas europeus da estirpe de Vitorino, tenha pelo menos o realismo, ele próprio alemão, de não embarcar em viagens-fantasma. Cita-se Habermas, o entusiasta eterno da Europa política, do primado da união política sobre a união económica e monetária:

“O descafeinado tratado reformista confirma, agora mais do que nunca, o carácter elitista de um acontecer político desligado dos povos (…), as estratégias propagandísticas deflacionarias com que alguns governos vendem em casa o resultado do Tratado de Lisboa, tudo isso corrobora o modo até agora vigente de fazer política e torna definitivo o angustiante desligamento entre o projecto europeu e a afirmação de opinião e de vontade política dos cidadãos”. (1)

O significado destas e doutras duríssimas observações, em texto por si próprio designado “A política da Europa num beco sem saída”, tem a validade e o alcance comparável à de um cardeal que rejeita a igreja, a sua própria via láctea.

As soluções apontadas por Habermas para a União Europeia são genericamente propostas qualificáveis como de refundação: constituição europeia, federalismo, harmonização económico-social, tudo a legitimar com um referendo europeu, de “dupla maioria”, de estados e de cidadãos. A legitimação plebiscitária da união política parece, aliás, a saída do desespero para a falta de uma via democrática feito a partir de baixo, do consenso dos cidadãos.

Percebendo a fragilidade europeia, Habermas não quer perder o carro da geopolítica e propõe à Europa ser um “mediador global”, uma espécie de solicitador de Washington, para que a China de amanhã não se pareça com a “América de Bush”. O idealismo reclamado é o de Kant e da sua “cidadania universal”, pouco útil quando o imperialismo dá as cartas de um jogo viciado.

Um pouco por toda a Europa os sociais-democratas não só estão em perda como em divisão de posições. Pálida imagem dos principais construtores da União Europeia, e que a dirigiram em aliança com a democracia-cristã. Situação prevista há mais de uma década, desde que esse centrismo reformista debandou, desde que esses partidos agravaram as condições sociais e trouxeram o estado social a leilão. A perda dos partidos socialistas é uma perda identitária, é uma perda de programa e projecto, de programa de reformas maioritárias e de projecto em “grande espaço”. Os gestores das privatizações socializaram o prejuízo dos seus partidos.

Nestas circunstâncias, percebe-se bem o drama social-democrata pelo fracasso da união política europeia. Para os seus defensores não era o pináculo da catedral. Era mesmo a pedra basilar. Essa união política que a burguesia e a burocracia tentaram edificar, dispensando a democracia simplesmente porque a democracia exigiria o social onde não queriam ceder. Essa esperada união, a seu ver, traria a resposta do comando político forte quando se deslocavam as placas da globalização para o Oceano Pacífico. Vitorino, ex-comissário europeu, sabe bem do que se fala, com a fuga para a frente. Habermas, contundente, não se limita a um horror lúcido, prognostica um desastre.

Ambos, contudo, têm um ponto em comum. O medo do isolamento das elites dominantes. Habermas queria ao menos tornar os europeus um “povo constituinte”. Difícil, como se vê, não há casas comuns sem democracia política e económica de raiz.

A.V. quer a pedagogia popular da austeridade e da liderança alemã. E diz, na citada entrevista ao Público: “o fosso entre essas elites e o conjunto da população é o que abre espaço para os populismos, e os populismos de esquerda e de direita são a semente do desastre para qualquer país europeu”. Tais palavras não provêm de nenhum irritado esquerdista, o receio que transmitem não tem a assinatura de um oráculo tremendista, não. Trata-se do senhor “realpolitik”.

Quem pôs esse projecto europeu nos carris do neo-liberalismo?

Quem dispôs a democracia à caricatura?

Quem blindou as liderantes elites?

O reencontro de uma via europeia exige o reencontro das possibilidades democráticas, o reencontro com o estado social, o reencontro com a propriedade pública como âncora da economia, o reencontro com a neutralidade militar e o desarmamento. É, por isso, que o tema Europa, ou “Ai Europa!” como lhe chama Habermas, passou a ser um eixo inevitável de recomposição da esquerda como alternativa da política vigente. A Europa não é um adorno, mas o torno, a ferramenta. Não esta Europa, claro. Quem semeou o desastre? Os socialistas camaleões dos liberais.

Notas:

(1) Habermas, Jürgen, Ai Europa!, Editorial Trotta, Madrid, 2009, págs. 81 e segs.

Luís Fazenda